Étienne Balibar. "Se a Europa continua assim, explode"


Foi o principal discípulo de Althusser. Étienne Balibar é um dos grandes nomes de uma galáxia de filósofos alternativos. O movimento revolucionário pode não ter partidos que o corporizem no planeta, mas no mundo académico têm tido um enorme acréscimo de popularidade pensadores como Badiou, Negri, Zizek e Balibar. O filósofo francês veio a Portugal para uma conferência de dois seminários organizados pelo Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, da Universidade de Coimbra, para falar de cidadania, universalismo e cosmopolitismo, e, claro, de filosofia e crise.

Esta crise que vivemos é um acontecimento normal no quadro do modo de produção capitalista ou é uma crise que pode dar lugar a uma ruptura?

É muito difícil fazer prognósticos e análises deste tipo antes do fim da crise. Há uma parte de hipótese, para não dizer de adivinhação, em todas as respostas a estas questões. Vou tomar esta pergunta num sentido marxista, em termos gerais, até porque você se refere ao "capitalismo"...

Acha que não existe capitalismo?

Acho que existe, sim. A crise tem primeiramente uma dimensão económica, mas também tem dimensões políticas e à escala mundial tem implicações na governança da economia mundial ou da economia mundo, como diria o meu amigo Immanuel Wallerstein. A parte fundamental desta governança é saber como se pode controlar a especulação financeira à escala mundial: paraísos fiscais, actividade dos bancos, aquilo que certos economistas chamam shadow banking, a face escondida da actividade bancária. Todos estes problemas podemos discuti-los do ponto de vista de um economista liberal. Eles têm tendência para pensar que o capitalismo passa necessariamente por crises periódicas e que sai delas inevitavelmente reforçado. Eventualmente pagando o preço da reorganização de uma parte das suas estruturas: mudanças na repartição da propriedade capitalista no mundo, alteração dos centros geográficos de riqueza entre o Norte e o Sul, eventualmente a transformação das instituições da política mundial. Se partimos de um ponto de vista marxista somos obrigados a tomar em consideração o facto de nem todas as crises se regularem automaticamente: o capitalismo tem contradições internas que podem ser mortais para ele. Das quais pode emergir uma revolução. Muitos marxistas, citava há pouco Immanuel Wallerstein, vendo a profundidade da crise actual - observam que ela não é só económica, é também política e tem mesmo implicações morais. E que se expressa com fenómenos de violência cada vez mais incontroláveis, sobretudo no Médio Oriente, mas também noutros pontos do globo - têm tendência para um discurso profético: "Anunciamos há muito tempo a crise do capitalismo, e aqui está ela." Wallerstein diz que uma crise acabará com o capitalismo tal como o conhecemos, sem que se possa saber se aquilo que vem depois será melhor ou pior. Eu sou mais céptico, não acredito na ideia de crise final do capitalismo?

Pensa que o capitalismo é eterno?

Não, as contradições económicas do capitalismo oferecem eventualmente as condições materiais e de possibilidade de uma transformação, mas esta transformação é política. E nem sequer é certo que as crise gerais do capitalismo constituam as conjunturas mais indicadas para realizar esta superação do capitalismo. Esta era apenas a convicção do marxismo organizado, a que eu tenho tendência para chamar "o marxismo", que existiu depois da morte de Marx e acabou em 1989 [data da queda do Muro de Berlim], mas hoje em dia esse "marxismo" já não existe.

Porquê?

O marxismo institucional tinha um esquema de pensamento catastrofista ou evolucionista, em que a lógica da história era a seguinte: primeiramente, o capitalismo, à conta de crises parciais, chegaria a uma crise geral e esta conduziria a uma transformação social e a uma outra civilização. Isto é, em minha opinião, um esquema ideal em que não temos nenhuma razão para acreditar. Isso não significa que não possamos sair do capitalismo, nem que podemos transformar a sociedade, mas simplesmente que não é possível associar automaticamente a ideia de crise do capitalismo à superação do mesmo. A última coisa que queria dizer em relação à crise actual é saber se estamos perante uma crise de ajustamento do capitalismo à globalização, que se resolverá pela mudança da liderança económica de uma região para uma outra. Em que, de uma certa forma, se virmos as coisas numa perspectiva europeia, o que se verifica é o regresso a um capitalismo normal. É preciso notar que, sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, o capitalismo na Europa ocidental caminhou para um certo compromisso entre o capital e a classe operária que permitiu que a classe operária saísse da sua condição proletária.

A crise é uma espécie de máquina de guerra de classes?

Sim, é uma autêntica corrida, até porque na China os trabalhadores não têm segurança social nem direitos. Mas todos os marxistas lhe dirão que eles começaram a organizar-se e a reivindicar. O facto de na China o Estado ser autoritário e não democrático permite manter uma situação que o capitalismo chinês e mundial aproveitam: são os capitalistas de todo o mundo que têm interesse em manter os baixos salários chineses. Nesta corrida trata-se de saber se vão conseguir reproletarizar os trabalhadores dos serviços e da indústria no Norte e no Ocidente antes que os proletários chineses consigam impor, pela luta, uma melhoria nas suas condições de vida. É um equilíbrio instável, até porque não é um problema apenas económico. Na China e aqui, quando as pessoas estão desesperadas, podem acontecer explosões sociais. Uma Europa em que há países com uma taxa de desemprego entre os jovens que atinge valores próximos dos 50% vai ter a prazo uma ruptura política. Esta espécie de redistribuição de cartas, e do ponto de vista do Ocidente uma certa proletarização, é um dos desenvolvimentos da crise. Mas a outra possibilidade é, e elas não se excluem, que se trate da entrada de um novo tipo de capitalismo. Para haver capitalismo é necessário haver acumulação de capital e que esta se faça através de mecanismos de exploração, mas eles não existem exclusivamente devido ao capital industrial. A acumulação do capital, hoje em dia, é em grande parte feita pelo capital financeiro e especulativo. Alguns economistas defendem que o capitalismo conheceu um processo de financeirização, tornando-se uma economia especulativa e da dívida. O objectivo do capitalismo deixou de ser apenas o aumento da taxa de lucro médio, passou a ser conseguir o mais depressa possível multiplicar os investimentos especulativos.

Pode-se separar o capitalismo especulativo do produtivo e conseguir um "bom" capitalismo produtivo ou um não existe sem o outro?

Se virmos as coisas localmente, observamos que a desindustrialização é um processo destrutivo não só do emprego como das relações sociais, da cultura e do mundo da vida. É importante resistir à desindustrialização, o que exige que tentemos inverter a relação de forças entre capital especulativo e produtivo, mas no final isso será uma causa perdida e sem esperança. Penso que, como dizem os ecologistas, os marxistas e muitos outros, o problema é insolúvel se o apresentarmos na forma de um dilema entre o actual capitalismo financeiro e o antigo capitalismo produtivo. É preciso fazer intervir uma terceira possibilidade, que será um outro modo de produção ou uma outra forma de desenvolvimento. É preciso opor ao carácter terrivelmente destrutivo do capitalismo financeiro, que David Harvey chama "accumulation by dispossession", outra civilização da produção e do consumo.

Defende que há um cosmopolitismo burguês e um cosmopolitismo popular, o processo de construção europeia não foi apenas para realizar o primeiro? Nesta crise observamos que a primeira vítima parece ser qualquer ideia de uma Europa democrática que sirva os cidadãos.

Fizeram-me, nesta conferência, uma pergunta sobre o conflito na União Europeia entre uma ideia de Estado federal cosmopolita por um lado e resistência nacional por outro. Queria sublinhar uma nota importante: é cada vez mais mistificador associar a ideia de cosmopolitismo ao processo de construção europeia. Não creio que a Europa seja uma construção cosmopolita, ou é-o de uma forma apenas negativa.

Porquê?

A União Europeia (UE) é uma construção supranacional ou pós-nacional, mas não implica a supressão das nações. Implica limitar a sua soberania e abrir, pelo menos idealmente, para os cidadãos dos diferentes países um outro espaço político. Podemos compreender que os defensores de uma Europa federal tenham sido inspirados por uma ideologia de tipo cosmopolita, porque estavam apostados numa via que pretende ultrapassar as nações e não queria pensar na construção de um novo império. Desse ponto de vista é muito interessante recuar às origens do pensamento federalista europeu. Gente como Saint-Simon ou Victor Hugo eram democráticos e republicanos e tinham horror aos impérios, austríaco, francês, britânico, e imaginavam a união das nações europeias numa forma diferente. Muitos dos promotores da visão europeísta devem parte das suas ideias ao cosmopolitismo, como Altiero Spinelli, que era um antigo comunista, portanto um internacionalista na sua origem. Subjectivamente, muitos dos europeístas são cosmopolitas, mas o que a Europa constrói não é o cosmopolitismo, é uma estrutura política e económica regional. O problema actual do cosmopolitismo é o de uma construção comum ao Norte e ao Sul, ao Ocidente e ao Oriente. É no fundo a ultrapassagem dos blocos regionais e não o reforço das suas estruturas. Deste ponto de vista a evolução de Habermas é muito interessante, porque o grande filósofo alemão acreditou durante muito tempo que a Europa podia ser uma espécie de fase intermédia entre o Estado nacional, que para ele era demasiado estreito e perigoso com o seu nacionalismo (para um alemão liberal estes temores percebem--se bem), e aquilo que é para ele, como para Kant, o ideal de uma unidade, não somente moral, mas também jurídica, económica e cultural de todos os povos do mundo. Ele escreveu que a Europa não é ainda um cosmopolitismo integral, mas era uma espécie de passo intermédio. Isso divertia-me muito, disse-lhe uma série de vezes que isso reproduzia exactamente o discurso de Estaline na época da União Soviética: "Fazemos um socialismo num só país, mas tenham confiança, trata-se de uma etapa intermédia entre a velha nação burguesa e a revolução mundial." A história demonstrou que não era nada disso. O facto de ser fixada uma constituição política à escala regional não constitui um progresso em direcção à cidadania mundial, é pelo contrário um ponto de bloqueio e de paragem.

Uma coisa que parece clara nesta crise é que não temos sequer uma democracia regional europeia, temos espaços democráticos nacionais e espaços de decisão à escala da União Europeia que não são democráticos. Há quem diga que é necessário regressar à soberania popular e democrática e que isso só é possível no quadro do Estado-nação.

Eu estou entre aqueles, e posso até estar enganado, que pensam que as condições de exercício da soberania popular hoje em dia como poder real não existem nos Estados-nação. Não existe porque o problema da democracia é em primeiro lugar um problema de contrapoder, controlo efectivo pelo povo e pelos seus representantes dos poderes que condicionam a nossa vida. Esses poderes são políticos e económicos. Desse ponto de vista a União Europeia é muito representativa disto, em que há cada vez menos separação real entre o poder político e o poder económico. Se queremos controlar de uma forma eficaz os poderes políticos e económicos dos quais dependemos: financeiro, monetário, etc., é necessário que o povo se exprima ao nível a que esses poderes existem, e eu não penso que eles actuem no quadro da nação.

Não é mais fácil fazer regressar ao quadro nacional os instrumentos de controlo da economia do que conseguir que a democracia se alargue ao espaço europeu?

Não estou de acordo, acho que as nações europeias em termos individuais, não só a Grécia e Portugal mas mesmo a Itália e a França, serão várias vezes mais fracas perante os mercados financeiros globais do que é a própria UE. O problema é que estamos na merda e numa situação impossível: a UE não funciona como meio de controlo, de resistência ou de contrapoder aos mercados financeiros. Pelo contrário, ela fixou como objectivo eliminar todos os obstáculos ao reino desses mesmos mercados. Desse ponto de vista não serve para nada às classes populares, porque colabora nessa mesma rapina. Mas não esqueçamos, por outro lado, que foi também desta maneira que os Estados-nação funcionaram no passado. A equivalência entra soberania popular e Estado-nação é uma questão muito conjuntural, não tenho nenhuma confiança no Estado-nação para ser defensor da democracia em face do capitalismo financeiro, em comparação com o que é hoje em dia o papel da própria União Europeia.

Na sua conferência falou sobre as categorias de Hegel para o estabelecimento de um espaço de cidadania mais largo. No caso da Europa não existe uma democracia europeia, não há uma sociedade civil europeia, nem uma opinião pública europeia. Todo o continente está dividido por línguas diferentes. Como é possível esse processo?

Os argumentos que opõe às minhas convicções a favor de uma Europa democrática são de tal modo fortes que não tenho capacidade de me opor, mas o que eu direi é que esta discussão é falseada numa larga medida pelo facto de em muitos sítios - sobretudo nos países do Sul da Europa, que foram as principais vítimas da crise - essa mesma crise ter servido de instrumento de dominação para manter e agravar a dependência e a subalternidade de parte dos países. Se olharmos para a Europa depois da Segunda Guerra Mundial, sem Turquia e Rússia, em 1945 a Europa foi cortada em duas por uma grande linha ideológica e política até 1989. Esta divisão entre Leste e Oeste determinou todo esse período da história do continente. Hoje a Europa está cortada também em dois, não é uma divisão ideológica com muros, espiões e exércitos, mas é uma divisão social, económica e cultural, em que o Norte da Europa drena os recursos do Sul da Europa. É, em termos marxistas, um desenvolvimento desigual, um processo ruinoso para a construção europeia. É óbvio que os pressupostos da construção europeia são também ideológicos, mas o princípio que se pressupõe, nessa reunião de povos tão diversos, é um mínimo de convergência em relação aos diversos interesses. Este processo não é feito de uma só vez, mas a partir do Tratado de Maastricht foi inscrito o princípio da livre concorrência sem entraves, e a Europa dotou-se de um princípio ideológico que tem um carácter tão totalitário como o que existia na União Soviética - é uma ideologia que se impõe sem discussão. Esta ideologia, como era momentaneamente do interesse dos países mais fortes como a Alemanha, foi imposta a todos - os franceses jogaram aí um papel catastrófico - até às suas mais extremas consequências.

Que tipo de consequências?

O postulado de partida está hoje em dia em ruínas: a construção europeia não aproxima os povos que fazem parte dela, mas tende a opô-los cada vez mais. Produz uma espécie de gigantesco corte que é legitimado por justificações e preconceitos: as pessoas dos países do Norte defendem que as do Sul viveram acima das suas possibilidades e as do Sul sublinham que as do Norte drenaram os seus recursos e funcionam como conquistadores. Se continuar desta forma, a Europa explode, sejam quais forem os meios usados para a sua continuidade. Para voltar à sua anterior pergunta, evidentemente que tenho consciência que é paradoxal e muito difícil continuar a defender a utopia de uma Europa alternativa a um regresso à soberania nacional. Mas há alguma coisa de falso nessa alternativa, porque a ideia de soberania nacional é um mito, é quando muito uma recordação de um tempo passado: os povos europeus, os gregos, os italianos, os portugueses, convencem-se que podem ter uma soberania nacional que não é completamente ilusória e que é possível governar no espaço nacional com prioridades que não sejam as do capitalismo financeiro actual. Alguns amigos meus, mesmo alguns economistas de renome, dirão que isso continua a ser verdade. Defenderão que, se saímos do euro, podemos desvalorizar e se o fizermos estamos em condições de defender os interesses da população, em lugar de esses interesses serem automaticamente desbaratados no quadro da moeda única. Este argumento deixa-me terrivelmente inquieto, porque não estou seguro que os bancos nacionais e as moedas nacionais dos países fracos não estejam ainda mais expostas aos mercados financeiros e aos especuladores do que estamos hoje dia. Acho também que a desvalorização competitiva é um remédio provisório que não resolve os problemas económicos da UE.

Na sua intervenção na última conferência sobre a ideia do comunismo, que se realizou em Nova Iorque, relembrou uma passagem do "Manifesto do Partido Comunista", de Marx e Engels, dizendo que os comunistas não têm um partido em especial e que os operários na sua emancipação o fazem contra a propriedade privada dos capitalistas e das nações. Qual é para si o sujeito, a organização e o espaço de uma transformação da sociedade actual?

[Silêncio.] Tem razão em apresentar-me a questão do sujeito e da organização necessária para uma transformação. Ainda sou suficientemente marxista para, pensando não só Marx como até Max Weber, ter em conta essa questão. Acho que para fazer transformações sociais e políticas é necessário haver forças organizadas. Não são suficientes, embora sejam importantes, as opiniões públicas e as mudanças morais. Para mudar são precisas forças políticas e elas dependem da organização, mas por outro lado o modelo marxista - simplificando muito, não apenas pelos olhos de Estaline, que deu a sua fórmula, a mais simples e convincente - repousa sobre uma construção em três andares: há a classe operária, e supõe-se que ela já é consciente da sua situação e tornada homogénea pelo capitalismo, depois surge o movimento e a consciência revolucionária e formas de organização que nascem directamente da luta de classes, e por fim há o partido revolucionário em que culmina todo esse processo e que afronta o Estado - o Estado é visto como a organização desse poder da burguesia. Perante o Estado há um contra-Estado que é o partido revolucionário. Sabe-se que este esquema, em termos históricos, deu lugar a transformações em muitos países e impôs reformas noutros, mas acabou por conduzir a um beco sem saída, para não dizer a uma catástrofe, porque o partido que se constrói como um contra-Estado perante o Estado funciona da mesma forma que o Estado que quer destruir. E portanto o problema de organização continua posto, mas em termos completamente novos, saindo dos pressupostos clássicos do marxismo, pelo menos da sua variante leninista. Há relações de classes, há luta de classes, mas penso que não há mais classes no sentido que Marx pensava.

Porquê?

Talvez porque o capitalismo aprendeu com a sua longa história, arranjou meios económicos que no seu funcionamento não juntam os trabalhadores, mas pelo contrário os dispersam numa multiplicidade de estatutos: precários, trabalhadores, desempregados, etc. Não quer dizer que esta gente não tenha interesses comuns, mas esses interesses não parecem conduzir de uma forma espontânea a uma linguagem única, tirando de uma forma moral, como exprimem os Ocupy Wall Street e os Indignados espanhóis, que dão voz a um protesto das pessoas contra a corrupção do sistema. Na realidade temos uma multiplicidade de movimentos alternativos. A solução que consiste em enquadrar todos estes movimentos alternativos numa organização única, tipo partido, é ao mesmo tempo impraticável e mais negativa que útil. É por isso que nessa intervenção em Nova Iorque eu dizia de uma forma provocatória que o papel dos comunistas não era organizar todos os movimentos mas desorganizá-los. Desorganizar é perigoso como fórmula, mas é uma forma de dizer que é preciso conseguir os pontos que nos permitam não ser prisioneiros de uma só organização e movimento.

Conversa em 2014

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