Antonio Negri. "Não há saída para a crise. A guerra tornou-se uma possibilidade"




Num dos seus muitos livros, Antonio Negri fala de Kairòs, o momento em que Deus toca na história; este filósofo italiano que nasceu em Pádua em 1933 já viu muitas vezes a história ser feita. E pagou o preço por isso. Acusado, por “arrependidos”, de ser o mentor ideológico das Brigadas Vermelhas, esteve preso. A Itália assustada com o terrorismo de extrema-direita e de extrema-esquerda precisava de exorcizar os seus fantasmas, mesmo que isso significasse acusar falsamente. Tem uma vasta obra escrita, em que se destaca, depois da sua libertação da prisão, “O Império”, escrito com o norte-americano Michael Hardt. Esteve em Lisboa para falar de manifestações e dos novos manifestos que aí vêm.

A crise a que assistimos hoje é uma crise normal ou é uma crise extraordinária que pode levar a uma ruptura?

É uma crise ligada a uma transformação profunda da ordem política, das condições tecnológicas da produção, e sobretudo devida à globalização. É este processo que está na base da crise, mas sem as transformações tecnológicas a globalização financeira não teria sido possível. Sem a forma como se trabalha a informática e a comunicação, a mobilidade e a flexibilidade de todas as forças produtivas seriam impossíveis. A globalização económica e a transformação informática são as duas faces de uma mesma moeda. Esta mutação é acompanhada pela passagem ao capitalismo financeiro em que o capital financeiro se torna o veio fundamental da globalização. É em torno da finança que se organizam os mecanismos de comando desta sociedade globalizada. Esse processo não se faz sem problemas. A transformação do universo financeiro dá aos mercados a possibilidade de mudar as estruturas políticas. Assistimos ao declínio relativo soft, mas real, da potência norte- -americana e ao nascimento de uma nova polaridade: a China. E ao mesmo tempo à crise do bloco europeu. Tudo isso contribui uma crise que é global.

Mas é uma crise profunda?

É uma crise muito profunda, extremamente profunda. No caso da Europa, ela não é capaz de gerir com uma organização adequada as transformações políticas inerentes à globalização. Não tem instrumentos políticos que lhe permitam defrontar a crise global, e por outro lado há uma crise financeira. Nesse campo, as instituições e os instrumentos financeiros europeus não foram capazes de resistir à pressão anglo-americana. E isso é perigoso porque as tornou integradas com as práticas dos capitalistas americanos que desencadearam a crise. Temos portanto uma crise que é provocada, em certa medida, por nós mesmos, europeus, que não conseguimos sair desta crise. Estou muito pessimista.

Está em Lisboa para participar numa iniciativa internacional sobre manifestações e manifestos. Observamos na Europa e no mundo um tempo de emergência de tumultos e de revoltas. Acha que elas podem ter sentido e conduzir-nos a uma modificação estrutural da situação? O seu amigo Slavoj Zizek costuma dizer que um dos problemas desta época é que acreditamos mais na possibilidade de uma catástrofe ou de uma invasão alienígena que na simples possibilidade da mudança de um modo de produção...

A questão posta nestes termos pode ter a mesma resposta que deu Zizek. O problema é que talvez os termos da proposição não estejam correctos. As pessoas são diferentes daquilo que a gente imaginava. Hoje a transformação das classes subalternas, que são aquelas que teriam interesse numa revolução, são extraordinariamente profundas. Há uma ligação cada vez mais plena, pelo menos nos países desenvolvidos, entre o velho proletariado e uma classe média enormemente empobrecida. E isso determina dificuldades profundas, de linguagem e de instrumentos de comunicação em torno dos protestos, mas sobretudo de projecto. Mas há elementos revolucionários em si: a indignação, e não falo especificamente do movimento dos indignados, e a consciência cada vez mais profunda e forte de que a ordem democrática inventada no século xviii e concretizada de uma forma global após a queda da União Soviética não é qualquer coisa que se possa confrontar com a ordem mundial que agora se impôs. Há uma crise política que alimenta reflexões e movimentos extraordinariamente poderosos. A crise está lá: à direita e à esquerda. A crise da representação política está presente em toda a Europa.

Em Itália temos o governo dos tecnocratas...

Em Itália atingiu-se o grotesco. É sempre assim, os italianos são sempre demasiado inteligentes de forma que conseguem sempre fazer as coisas na forma pior. É evidente em Itália que a democracia já não existe. O que sobra é uma espécie de ditadura comissária, como se define nos tratados que eu estudava quando era jovem. Percebia-se, lendo Friedrich Carl, que a ditadura romana não era igual a uma ditadura como a de Mussolini, mas era um regime que procurava a ordem do bem-estar de uma nação, através da entrada de uma vontade exterior na resolução de uma crise anterior e interna.

Na sua obra põe o acento da mudança, não nas condições económicas existentes, mas na tradição do “operaismo” italiano, na acção de quem trabalha.

No “operaismo” damos mais importância ao movimento: mais importância ao trabalho vivo em relação ao trabalho morto e à condição institucional. Mas não esquecemos essa parte, até porque há sempre acção e resistência. Hoje estou convencido que o grande problema é que a relação entre acção institucional e realidade social é uma relação quebrada. Podemos retomar, num sentido diferente, a célebre fórmula de Mao de que “um se partiu em dois”. O problema não é somente dos proletários que têm dificuldades ou dos movimentos de indignação, é também criado pela nova ordem financeira. Há uma ordem financeira que movimenta muitas vezes mais capital que aquele que corresponde à produção de bens e serviços. Neste quadro, o keynesianismo já não funciona, não pode funcionar a nível nacional, e a nível global não tem interlocutores como os sindicatos. Tudo aquilo que representava a velha lógica fordista da produção não pode existir numa relação globalizada. Qual é a regra pela qual o capitalismo financeiro deseja desenvolver-se? Vivemos o risco de ver desencadear uma guerra. Nestas condições, em que não há uma saída objectiva para a crise, a guerra tornou-se uma possibilidade.

Uma guerra no Irão seria uma escapatória possível para a actual crise económica?

Não acredito que a guerra vá ser decidida porque há uma crise. Acredito que a crise pode determinar a guerra. A conflitualidade é sempre depois. Tenho medo. Vi no outro dia o primeiro-ministro israelita dizer que “a guerra estava muito longe”, logo os meus receios de que esteja próxima podem ser fundados [risos].

Nos seus trabalhos rompe com a lógica tradicional dos pensadores associados ao comunismo: a existência de uma classe de vanguarda e de um partido de vanguarda. Defende uma mudança que venha de baixo...

Já não há vanguardas da classe operária.

A pergunta que lhe queria fazer é como pode acontecer uma mudança de baixo feita por uma multidão de singularidades. Como pode uma massa de diferentes criar uma espécie de sentido para criar algo de novo?

É preciso ter atenção. Não é verdade que sejam todos diferentes. É verdade que a Primavera egípcia parece nada ter que ver com o movimento de Madrid e que a luta dos subúrbios de Paris ou de Londres nada têm que ver com o movimento do Occupy Wall Street, mas é também verdade outra coisa que é a existência de um efeito de imitação extremamente poderoso. E ao falar de efeito de imitação não estou a abordar alguma coisa de simbólico: os efeitos de imitação nas bolsas mundiais são elementos fundamentais para perceber a crise em que vivemos. Por seu turno, não podemos explicar os movimentos e as revoluções de 1848 sem abordar os efeitos de imitação, mesmo numa altura em que os meios de comunicação social eram embrionários, como não podemos explicar 1968 sem eles. Devemos por isso ser prudentes nessa análise. É verdade que a força de trabalho que era composta pelo proletariado se transformou radicalmente. Nisso entraram a comunicação e o conhecimento. A comunicação não é apenas que nós dois podemos comunicar. É o facto de nós dois podermos produzir juntos através da comunicação, da informação e do saber. Actualmente assistimos a um mundo em que há formas comuns que se foram consolidando. Por exemplo, o comum da dívida. Hoje em dia se fizermos uma análise de tipo humano da exploração, vai encontrar no cimo, não o homem explorado, mas o homem endividado. E o homem endividado está dentro de uma rede, e está numa rede que pode tomar consciência do peso da dívida e revoltar-se. Há outras redes, como a dos homens “mediatizados”, aqueles que são alienados da comunicação. Mas aqui também é possível ver instrumentos de comunicação que podem determinar uma subjectividade alienada transformar-se em forças enormes de revolta. E há o homem “securizado”. Todos os governos de direita fazem um apelo evidente a isso. A procura de segurança é uma necessidade que encontra campo nas pessoas perante uma insegurança crescente. Uma ordem mantida pelo medo. E há ainda o problema do homem representado, representado de que forma? Chegamos aos absurdos mais inimagináveis: a corte suprema americana deu a autorização de serem anónimos aos que contribuem com fundos para as campanhas dos candidatos. Significa que a riqueza enquanto tal assume o papel fundamental na escolha da classe dirigente. Entramos no reino da pura loucura.

Aparentemente, apesar do efeito de contágio, os movimentos produzem resultados diferentes: os indignados marcham por uma democracia real, a Primavera Árabe levou ao triunfo do fundamentalismo islâmico e o discurso da insegurança faz subir a extrema- -direita em toda a Europa...

Julgo que abordou aqui um problema fundamental que é a forma como podemos utilizar uma mesma situação. Como sabe, há, por exemplo, uma teoria que parte de Maquiavel que é democrática e há uma teoria que parte do mesmo autor que é contra as mudanças. O jogo está sempre aí. E é necessário saber jogá--lo. Estou extremamente pessimista, e não sobretudo pela sorte da herança de Maquiavel, mas pelo destino da humanidade (risos). Honestamente, hoje chegámos a um ponto em que, como dizia o velho Karl Marx, as forças produtivas e as relações de produção estão numa contradição profunda.

Mas essa contradição não tem aparentemente um sujeito histórico que a cavalgue.

Estou convencido que essa força é o trabalho cognitivo. As forças que trabalham na informação e na comunicação, não falo obviamente dos jornalistas [risos]. É, por exemplo, a luta nas universidades e a criação de uma nova subjectivação. Hoje os instrumentos não são os partidos. De direita ou de esquerda, os partidos estão completamente afectados pela crise da representação.

Defende que se devem recusar as eleições e a escolha de representantes democrática?

Para mim, vivemos um momento de existência de um poder constituinte que reinvente radicalmente as instituições que nos permitem viver juntos. Não sei quem as vais reinventar. Acho que não devemos resolver esse problema em Wall Street. O dinheiro deve assumir um poder constituinte ou são os de baixo que devem fazê-lo? Quem vai ganhar?

Em 2009, na sua intervenção no colóquio internacional sobre a ideia do comunismo, defendeu a multiplicação das acções da multidão contra o Estado, a vivência de uma militância comum e a criação de novas instituições...

É evidente que todo o movimento de subjectivação só pode partir de subjectividades que tenham mudado. As mudanças começam pela alteração da singularidade e é preciso fazê-las. Não há um qualquer partido comunista que as faça por nós. Eu venho de uma família de tradição comunista, em que vi gerações de pessoas decididas a fazer as coisas. Somente assim é possível produzir subjectivações que se tornem reais. Depois o problema é que de facto vivemos numa situação que é revolucionária. Mas dizer isso não significa que haja uma revolução. Quando Marx começou a escrever “O Capital”, em 1858, dizia “assistimos à crise mais bela”, era uma crise terrível, que lhe permite entender as leis exteriores ao capital, que são aquelas que decorrem da luta de classes. Estamos numa situação parecida, entramos num mundo novo, no qual ninguém sabe o que se passará. A consciência desta ruptura em que “um se dividirá em dois” está hoje presente.

Assistimos um pouco por toda a Europa à destruição das empresas públicas. No entanto, faz na sua obra uma distinção radical entre serviços públicos e bens comuns, tendo uma apreciação negativa daquilo que é público. Defende os serviços públicos neste contexto de destruição do Estado social?

Vou dizer-lhe claramente. Em Itália fizemos um referendo para impedir a privatização das águas. Foram 28 milhões de italianos que votaram contra a privatização da água, e neste momento o governo, com o apoio da Europa, decide privatizar a água enquanto nós, os 28 milhões, lutamos para que a água fosse um bem comum. Não só a água, mas tudo aquilo que existe em torno dela deve ser gerido de uma forma democrática. Há 28 milhões de pessoas que votaram isso e agora querem-nos impor uma água privada mascarada de pública. Considero que o público não é mais que uma garantia do privado. Hoje em dia o público não é mais que a manutenção da ordem pública para dar aos privados, numa relação de subordinação, os bens comuns e a exploração das coisas. O público foi sempre nas democracias capitalistas alguma coisa que servia os interesses privados. Parecia existir apenas numa outra correlação de forças, num tempo em que a revolução soviética e o medo da União Soviética, e as lutas de classes nos países ocidentais determinaram essa existência. Uma existência que era mais forte em nossa casa, porque estávamos mais perto dos soviéticos, e bastante menos forte no Texas, que estavam mais longe da União Soviética [risos].

Falava nos movimentos universitários, mas assiste-se em Portugal a um processo em que cada vez é mais caro estudar no ensino superior.

Por todo lado tanto vemos a privatização falir como trinfar. Estive no Chile, e aí há um forte movimento antineoliberal com uma fortíssima capacidade de subjectivação. Na América Latina assiste-se a uma verdadeira revolução nos últimos 20 anos. Esta irreversibilidade do caudilhismo, a ruptura da dependência económica com os países do Norte. No Brasil foi instituído o rendimento mínimo garantido. Eram coisas inimagináveis há décadas. Ontem estive com uns amigos e eles diziam que a Biblioteca Nacional portuguesa está quase sem dinheiro. E eu dizia-lhes: “Porque não pedem aos brasileiros?” A manutenção do património da língua portuguesa é também do interesse deles. E não é irrealista, mas se eu dissesse há 20 anos que o Brasil estava em condições de dar dinheiro a Portugal ninguém me acreditaria.

Em Portugal seria mais provável ser privatizado para os chineses comprarem [risos]...

Ai, também é necessário ser prudente. Nunca se sabe o que se passa na China. A definição do capitalismo chinês exige rigor. Ali o poder das empresas públicas é gigantesco. E é preciso perceber que toda a crise cíclica do capitalismo global, que nos engloba a nós e a eles, vai necessariamente repercutir-se na China e acerbar contradições. Até porque os chineses não são carneiros. São pessoas.

Há mais de uma década escreveu “o Império”, com Michel Hardt, e aí defendia que havia uma espécie de desaparecimento da soberania dos estados. Mudou de opinião com este recrudescimento das potências nacionais: as guerras dos Estados Unidos, o aparecimento da China, a imposição da vontade alemã na Europa, etc.?

Mudámos e não mudámos. É evidente que não houve uma constitucionalização do império, mas também é evidente que mesmo os poderes nacionais fortes, como a China e a Alemanha, estão completamente subordinadas ao mercado. E esse mercado não tem pátria, apesar dos esforços chineses e americanos. Dito de outra forma, o soft power americano é isso, é a transposição do poder político para o poder financeiro. Estamos a viver essa forma do declínio americano que é clássica: já se tinha passado em Espanha há séculos, aconteceu com o Reino Unido há uma centena de anos.

Pensa que é possível que os EUA percam a hegemonia político-militar?

Do ponto de vista militar isso é totalmente evidente. Os EUA perderam todas as guerras em que se têm metido. Não sei se têm a capacidade de vencer o Irão. Os israelitas também perderam a última guerra em que se meteram no Líbano. É preciso ser realista, eles não são a grande potência que as pessoas imaginam. Há 20 anos, quando escrevíamos “O Império”, tivemos conhecimento de um livro de Joseph Nye em que se falava do conceito de soft power. O autor era colega do Michael Hardt e ficamos fascinados pela sua tese, em que ele dizia com todas as letras que a grande potência americana tinha de certa forma terminado. Neste momento está a fazer lobbying em Washington a vender o presidente. Foi assim que passaram do governo à governança, e esta não se faz com os porta-aviões, mas com o poder financeiro e as agência de notação.

Participou em 2009 numa conferência internacional com o desafio de discutir uma nova ideia de comunismo. Nela estiveram presentes dezenas de pessoas, entre os quais Badiou, Rancière ou Hardt. Há uma convergência entre filósofos diferentes a este ponto?

Há grandes diferenças, mas isso não significa nada. Aquilo que é importante é que voltámos a conseguir estar juntos para falar do comunismo.

Há algum futuro numa palavra que nos dias de hoje está contaminada por regimes como a Coreia do Norte e a China?

Eu sou contra o estalinismo desde que nasci. Estive preso porque os comunistas italianos me deixaram ir para a prisão. Nunca joguei esta ambiguidade. Para mim a ideia de comunismo é a que tinham o meu pai e os meus irmãos, a vontade de construir uma sociedade em que a igualdade é fundamental, em que não haja patrões, sobretudo patrões idiotas [risos]. Eu nasci durante o fascismo. Tinha 12 anos quando o fascismo caiu e não foi bom viver nesses tempos.

Viveu grande parte do século xx e a sua transição para o xxi. Tem esperança?

Sou pessimista porque tenho medo. Vejo o que há, mas da outra parte sinto a potência deste século de reiventar, talvez não o comunismo, certamente não o comunismo soviético, mas o comum. É preciso reinventar as formas em que teremos a capacidade de nos dirigir a nós mesmos.

Entrevista feita em 2012

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