Alain Badiou. "O amor não é redutível à política e ao social, tem uma singularidade persistente"


Somos mortais que persistem no tempo através de verdades que criam no amor, arte, política e ciência. Badiou um dos maiores filósofos vivos fala-nos da sua filosofia e política.

Nietzsche garantia que grande parte das teorias de um filósofo estava contida e era explicada pela sua vida. Quanto da sua vida explica a sua filosofia, Alain Badiou? 

É uma grande questão. Queria começar por dizer que do ponto de vista puramente filosófico é preciso dizer que eu tive uma vida existencialista sartreana antes de entrar em outras coisas. Foi aí que eu encontrei a filosofia. Este elemento subsiste em mim, apesar de tudo, e revela-se na importância que continuo a dar à categoria de sujeito, que recusei eliminar no momento do estruturalismo, no momento do cienticismo e no meu momento de Althusser. Para além disso, a diversidade dos meus interesses, inclusive teóricos, fez com que me encaminhasse para a teoria das condições, para a filosofia. A ciência, como uma das condições, reflete bastante o meu interesse pelas matemáticas. O meu pai era matemático. A poesia e a literatura vêm da minha mãe. É um interesse meu de longa data. Quando comecei a escrever, comecei pelos romances, o amor é uma figura essencial na vida de cada um de nós. Na política é, antes de tudo, uma figura de engajamento antes de ser uma reflexão. Em primeiro lugar, devo isso a uma herança de o meu pai que esteve na resistência. Foi republicano e socialista de esquerda, opôs-se à guerra da Argélia e foi presidente da Câmara de Toulose. Por outro lado, eu também me envolvi na questão da contestação à guerra da Argélia, foi a minha primeira militância política, que além disso me permitiu perceber o que era estar contra a corrente. Quando tomei posição em 1954-55 não éramos muitos que defendíamos essa posição.  

Esteve com o seu pai na cisão que criou o PSU (Partido Socialista Unificado). 

Participei na cisão dos socialistas por causa da guerra, justamente.  

Não comecei a ser contra a democracia parlamentar logo no início da minha vida. Foi uma posição que veio depois do Maio de 68 e das suas consequências. Mas nos anos 50 e no início dos anos 60, militava no PSU e era secretário-federal no Marne, e dirigi campanhas eleitorais.  

Temos cerca de oito mil milhões de “animais humanos”, para utilizar uma designação sua, quantos deles são “sujeitos”?  

Penso que é preciso fazer uma distinção entre indivíduo e sujeito. Para mim, para que exista um sujeito é necessário que haja uma processo de subjetivação. É uma figura particular do indivíduo. Não consigo dar uma estatística, mas simplesmente aceito dizer que a figura da subjetivação – que é a entrada de um indivíduo num dos procedimentos de verdade – pode ser o sujeito amoroso, o político, o apaixonado pela arte ou o cientista. São esses quatro registos que permitem processos de subjetivação. Existe uma relação entre sujeito e indivíduo: considero que todo o indivíduo pode participar num processo de subjetivação. Não excluo ninguém dessa possibilidade de subjetivação.  

É possível existir um indivíduo que não participa num processo de subjetivação em toda a sua vida? 

Acho que é muito improvável. Em todo o caso o que se pode sempre passar é que haja uma subjetivação a que não se seja muito tempo fiel e que seja abandonada rapidamente. Essa é a figura com a qual me fui confrontando recorrentemente depois de Maio de 68, quando houve uma grande corrente de gente a renegar o que aconteceu. Uma corrente de abandono, de retorno a posições reacionárias e de regresso ao conservadorismo imperialista. Quando assisti a isso, em grande escala, pensei que a subjetivação é uma coisa mas o desastre do sujeito, chamo-lhe assim, existe também. Finalmente, tudo isso deve ser pensado em termos dinâmicos. O sujeito é o processo de subjetivação que continua, mas sempre ameaçado por um abandono, para o primado da conservação individual sobre tudo o resto.  

Na sua teoria, no processo de fidelidade a um acontecimento, o sujeito toca a imortalidade. Essa imortalidade é uma figura de estilo ou é algo mais? Sabemos que o ser humano está condenado a desaparecer, o planeta Terra também, e mesmo o universo como o conhecemos está condenado no fim dos tempos.  

Este universo pelo menos (risos). 

O que é esta imortalidade? Não se trata mais de uma universalidade?  

Penso que a imortalidade é um pouco metafórica, mas o que isto significa é que tocamos no interior da fidelidade a um tipo de absoluto. A universalidade é um estado, mas penso que para fundar uma verdadeira universalidade é preciso tocar esse absoluto, tocando algo que no seu intrínseco não é mortal. A saber, como diria Espinoza, tocamos numa ideia verdadeira no processo de fidelidade, podemos morrer, mas ela fica sempre lá, enquanto for verdadeira e acessível a outros mortais. 

O acontecimento é visto, num dos seus últimos livros, como uma exceção imanente. Como é possível fazer com que essa figura não se confunda com uma espécie de transcendência laica? 

Não creio que uma verdade seja uma transcendência. Esse tocar no verdadeiro é imanente, não existe em lado nenhum essa transcendência. O verdadeiro não existe senão na subjectividade, é criado numa imanência, todas finitas, mas que tocam de forma imanente em algo que não é finito. É isso que depois de sempre a filosofia chama verdade. Há, evidentemente, duas conceções: uma que acha que existe um garante transcendente de tudo que é expresso, por exemplo na teologia, e depois há uma conceção imanente. Seria na filosofia clássica, próxima da de Espinoza, que alguns marxistas foram beber, conseguir uma forma de absoluto que não é existente senão na figura de uma finitude particular que é esta do espírito humano. A única que conhecemos, embora possa haver outros animais capazes de absoluto em outros planetas e em outros universos.  

Há outros autores, como Eva Illouz, que consideram que não existe hoje um sentimento de “amor” fora do capitalismo. Mais que influenciar exteriormente o amor, o capitalismo produziria a nossa conceção e prática atual do amor. Mas na sua teoria é possível ter um procedimento de verdade e acontecimentos no campo do amor. Há uma espécie de valor universal do amor que não é tocado pelo contexto social, uma espécie de ideia platónica de algo de universal.  

Não é totalmente assim, porque eu não excluo que a figura do amor não possa ser colorida, transformada e diferenciada pelas configurações sociais. O que penso é que os quatro tipos de acesso às verdades não são completamente justapostas. É evidente que não há verdades políticas que possam escapar às diferenciações sociais, pelo facto de sermos um capitalismo mundializado. Mas quando se está nas outras figuras não há uma relação tão direta. Se considerarmos a ciência, podemos dizer que o capitalismo tenta domesticar a ciência porque a quer meter ao serviço da produtividade. Há uma tendência interna ao capitalismo que tende a identificar ciência com técnica, mas uma resistência é sempre possível. Encontramos ainda hoje cientistas que são completamente livres a abordar os problemas que pretendem tratar. Não há nenhuma coincidência absoluta entre o procedimento político e o científico. O mesmo é verdade para o amor, apesar de o amor de uma certa maneira – eu cheguei a escrevê-lo – estar em crise. É remetido para um conjunto de práticas individualizadas, está ao serviço de certas formas de lucro, é confundido com uma sexualidade feliz ou como um bom contrato de vida com alguém. Isto são as ameaças, mas penso que existem ainda paixões amorosas, que conseguem extrair-se desse contexto. É preciso dizer que esses obstáculos existiram sempre. Veja-se o caso do movimento de amor cortês na Idade Média, há qualquer coisa que é anti-feudal ao mesmo tempo que é feudal. O mesmo se passa hoje em dia. Há amores que são corrompidos pela figura do interesse dominante e do lucro pessoal do capitalismo instituído. Mas como o amor não é redutível à política e ao social ele tem uma singularidade persistente.  

Defende que, de certa forma, a oposição ao amor são os laços do casamento, e que a oposição à emancipação está na institucionalização e na figura da representação. Mas isso não nos obriga, para sermos fieis ao acontecimento no amor e na política, a estarmos num estado permanente de paixão ou de revolução impossíveis de manter?  

O problema é que as instituições políticas, que deixam de ter qualquer comunicação com os movimentos que as originaram, acabam fundamentalmente por renegar as intenções iniciais desses mesmos movimentos. É a questão da dialética entre as figuras organizadas e as figuras ditas espontâneas. De um lado o movimento e do outro lado a organização. A questão definitiva é como se prolonga e mantém uma certa relação entre movimento e partido, usando as categoriais mais evidentes. É uma dialética muito complexa que apareceu desde as origens do pensamento comunista. Nos anos 20, antes de morrer, Lenine alertava que o Estado se tinha reconstituído depois da revolução, com uma distância incontrolada e exagerada em relação às massas. Os sovietes pereceram e não eram mais a expressão organizada do movimento. Há na política uma complexidade original que faz com que não haja política que possa existir e manter-se sem que haja organização. Em todo o lado em que o movimento existiu sem uma forte organização acabou por ser destruído. Há uma dialética entre movimento e organização que é constitutivo d política. Há fases em que a parte organizada do movimento é subordinada, e outras em que a organização é anterior a todo o movimento. A política moderna pressupõe um pensamento e uma prática inventivas que consigam manter uma relação entre o movimento e a organização. Isso pressupõe estar sempre em estado de paixão? Podemos projetar isso na relação subjetiva entre paixão e razão, mas não sei se é uma boa aproximação ao tema. É obrigatório que a participação num movimento implique um estado de paixão? Não sei se é o E termo mais correto. Participo em muitos movimentos e creio que muitas vezes o que se busca nessa participação é uma figura de racionalidade imanente. Senão vamos acabar por dizer que é o partido que é racional e o movimento é passional, o que é uma psicologização desagradável. No interior do movimento existe uma paixão racional. 

Marx defendia que a consciência e as ideias eram reflexo de uma certa situação social, mas que os sujeitos tinham a capacidade e a liberdade de mudar as sociedades. E que os que mais podiam ser sujeitos dessa mudança eram os que não tinham nada a perder, como os proletários. Na sua teorização, a capacidade de ser sujeito da emancipação social é independente das relações sociais?  

Não é independente das condições sociais. A figura constituída e organizada da política comunista de hoje exige que ela seja largamente conduzida, à escala do mundo, por forças que não têm nada a perder e que têm interesse no fim do capitalismo. Toda a política que não visa organizar essa gente – por exemplo a fração do proletariado que é de origem estrangeira e aqueles que têm o interesse de acabar com o capitalismo – é uma política sem nenhuma possibilidade de triunfar. As condições sociais mais do que determinantes constituem uma obrigação política. Se não se estabelece uma relação com esses setores sociais, não há possibilidade de fazer uma política emancipadora. 

 Na sua teorização, o acontecimento não pode ser produzido conscientemente e não é previsível na situação. Isso não impede que haja uma ação de emancipação social, se o nosso esforço na mudança é independente da mudança que pode ocorrer? 

O acontecimento para mim é sempre produzido numa situação determinada. Os seus materiais são internos à situação. Acontece na situação. Mas para mim é sempre um exercício meramente retrospetivo pretender encontrar uma determinação do acontecimento na situação. Se fosse assim tão previsível, haveria sempre gente que conseguiria prever os acontecimento, ora isso não acontece assim. O acontecimento é uma mistura de algo que está em relação com uma situação e que ao mesmo tempo não era previsível. Por consequência, ele introduz elementos a partir dos quais uma novidade de procedimento de pensamento é possível. Sublinho o facto que, dessa maneira, o acontecimento não produz por ele mesmo uma nova realidade em política, mas produz uma possibilidade.  

Essa dimensão de encontro do acontecimento, não acaba um pouco por ser como jogar na lotaria e não há um grande papel da sorte e do azar? 

Há um elemento de azar, mas não é como jogar com uma previsão do azar. O jogo faz-se tentando prever o azar que aí vem. A roleta vai rodar e dizemos que será o quatro. Na vida não é assim. Não se pode pensar em termos de prever o azar em relação ao acontecimento que nos vai fazer pensar. As consequências que se vão retirar subjetivamente do acontecimento são internas a uma determinada situação. Vai-se ficar fiel a uma coisa que é um pouco exterior à situação, mas mesmo assim nasce dentro da situação. É um processo invertido em relação ao jogo: o azar e a sorte no acontecimento é anterior, e não depois. 

Gosta de citar a ideia de Hegel que a filosofia está sempre em atraso, reflete sobre algo que já aconteceu. Mas no seu caso isso não é contraditório. Como é possível haver uma ideia de hipótese do comunismo quando não há comunismo, nem mesmo movimento comunista?  

Penso que a hipótese comunista é uma hipótese que como todas, comporta momentos de verificação e ação de também outros momentos de incerteza. Não temos, pelo instante, provas absolutas da realização completa da hipótese comunista. O que temos é razões racionais para manter a hipótese, acompanhada com a necessidade de fazer um balanço sério que seja o nosso e não o do adversário, do falhanço dos empreendimentos comunistas anteriores. Podemos assumir estes falhanços sem renunciar à hipótese. O problema é quando se começa a estar de acordo que a análise do adversário sobre estes falhanços é a boa, não conseguimos sair disso. Devemos aceitar que há falhanços provisórios da hipótese na sua primeira experiência histórica. Houve 70 anos dessa experiência. Do ponto de vista histórico é quase nada. A meu ver o capitalismo é o último avatar das sociedades de tipo neolítico, com cerca de 4.000 anos de história. A hipótese comunista é como tivesse acontecido ontem. Temos que aceitar que houve uma experimentação que durou menos de 70 anos e que essa experiência mostrou a existência de um problema que não foi previsto antes, que levou a esse falhanço. Deve-se reformular a hipótese comunista à luz do balanço que fazemos desse falhanço. Para mim esse falhanço deve-se sobretudo à relação entre organização política e Estado. É qualquer coisa que toca na parte mais obscura da própria proposta. Era convicção de Marx que era necessário fazer um processo da extinção do Estado, e foi esta questão que não foi verdadeiramente experimentada. Aquilo que aconteceu foi mais a construção de novas figuras de Estado, que pareciam levar mais à sua consolidação que ao seu desaparecimento.  

Teria sido possível ter corrido de outra maneira? Depois da Revolução Russa de 1917, houve uma guerra civil e o país foi invadido por exércitos de cinco países. Seria possível nestas circunstâncias de cerco haver uma extinção do Estado? O chamado socialismo de caserna não é a única resposta a isto? 

É uma questão importante. A experimentação da hipótese comunista deve ser feita ou a jusante do Estado ou a montante dele. Uma experiência larga tem de ser internacional. É preciso não esquecer que Lenine pensava a revolução na Rússia era apenas um prólogo da revolução na Alemanha. Aquilo que verdadeiramente mudou a história do mundo foi a derrota da revolta spartaquista em Berlim. Se os spartaquistas tivessem ganho, seria previsível que a revolução se estendesse a todo o mundo ocidental e capitalista. A Rússia é grande, mas enquanto laboratório da hipótese comunista era demasiado pequeno. Devemos aceitar que a escala para se realizar a hipótese não pode ser a tomada de poder num determinado país. Creio que esta é uma conclusão que tem de ser retirada deste balanço. Por outro lado, se não se aceita a ideia de uma hipótese comunista, somos obrigados a aceitar que chegamos ao fim da História.  

Porquê? 

Porque a História é a história da luta de classes. Se o sistema capitalista mundializado for o sistema definitivo da humanidade, isso significa que ele é a-histórico.  

Usando a blague de Zhou Enlai sobre a Revolução Francesa, não é demasiado cedo para ter uma opinião definitiva sobre isso? 

(Risos) É possível. Até porque o capitalismo não é, segundo os parâmetros da história da humanidade, algo de muito velho. O sistema geral no qual o capitalismo se inscreve, que prevê a propriedade privada, a família e a exploração, é o que eu chamo de neolítico. Considero que o capitalismo é a última figura do sistema neolítico antes do fim desse sistema geral. São temporalidades muito grandes, para as quais é preciso deixar o tempo trabalhar. Os chineses têm a vantagem de pensar tendo em conta a duração longa do tempo.  

Utilizando os seus conceitos, parece claro que neste mundo se vêem poucos sujeitos emancipadores, mas muitos sujeitos obscuros. Há uma espécie de retorno aos anos 30 com formas autoritárias e fascizantes de poder.  

Penso que sim. Isso prova que não é verdadeira a hipótese do fim da História. Ela baseia-se na ideia que se tinha encontrado o regime económico necessário e a melhor política possível. A economia necessária seria o capitalismo moderno e a fórmula política adequada seria o parlamentarismo democrático. Agora é visível que o parlamentarismo democrático tem uma série de problemas por todo o lado. Vemos reaparecer posições nacionalistas e fascistóides. Vemos que o sistema que parecia eterno, com um partido de centro-direita e um partido de centro-esquerda, está em crise um pouco por todo lado. Vemos aparecer figuras e personagens que não estão nesse registo. É o caso, em grandes países como os EUA, de Trump, do Brasil de Bolsonaro, da Índia de Modi e de Duterte nas Filipinas. É uma situação mundial. Esta crise demonstra que estamos longe do estado de paz universal que garantiria o fim da história. Teremos assim que relançar a hipótese comunista. É preciso assumir que é necessário recrear uma nova etapa da hipótese comunista. Houve a primeira etapa com Marx e a sua teorização; houve uma segunda etapa da sua experimentação que começou na Revolução Soviética e agora estamos numa possível terceira etapa, que se deve alimentar com o estado das coisas e as brechas existentes no estado de crise em que vivemos. O que é característico de este estado são movimentos sem estratégia e direção. Movimentos que muitas vezes nem sabem mesmo o que são, nem o que querem. Apenas percebem que não estão contentes. Protestos planetários muito diferenciados em que há milhões de pessoas que se mobilizam na Argélia, Chile, Hong-Kong, França, acompanhados por fenómenos como a desintegração progressiva da União Europeia. Tudo isto cria um ambiente em que se deve trabalhar para que esteja na ordem do dia o regresso da hipótese comunista. 

Defende que deve haver procedimentos democráticos na discussão filosófica, mas não necessariamente na política, porque estes não garantem a igualdade entre as pessoas. O que defende como forma de organização política?  

Defendo que se deve restituir à ideia de democracia a sua significação original. Sou contra a figura parlamentar porque ela é uma figura da representação e porque está muito dependente das relações de classes. Até pela desigualdade existente no domínio da circulação da informação. Os grandes grupos proprietários dos meios que permitem a circulação da informação são capitalistas. Houve estratégias anteriores para ganhar alguma coisa no interior da figura parlamentar. Há em França uma grande experiência disso: houve um grande partido comunista que jogou essa cartada a fundo, a partir de um certo momento não jogou mesmo mais que essa carta. Foi isso o problema. Nós sabemos no que isso resulta. Sou contra o parlamentarismo até porque a democracia não é isso. Na sua significação etimológica significa poder ao povo. É preciso retornar a uma ideia leninista de todo o poder aos sovietes. Na realidade não sabemos o que isso pode significar até porque não existem mais sovietes. É a partir dessa fórmula que podemos trabalhar num poder, numa espécie de rede constitutiva de assembleias que decidam. A partir de um Estado que esteja em permanente transformação dele mesmo, e não seja uma realidade imutável. Tudo isso é muito abstrato, mas é a partir daí que é necessário trabalhar.  

Opõe-se a uma ética baseada na tolerância, nos direitos humanos e no multiculturalismo. A essa ética opõe uma engajada nos procedimentos de verdade, o que significa isso? 

Porque na realidade vejo que são abstrações que dissimulam na verdade o contrário do que elas afirmam. Dizem que estamos em democracia quando na realidade tudo é detido por uma pequena oligarquia muito restrita; pretendem que somos multiculturalistas, mas passam o tempo a votar leis de exclusão e de expulsão etc. No fundo isso não passa de mentiras. Não devemos falar essa língua. A verdadeira categoria é que a política, ela mesma, deve ser um verdadeiro internacionalismo. No “Manifesto Comunista”, Marx escreve que é papel do comunista excluir em todos os sítios em que participa a referência à questão nacional. Comecemos por aí. Mas não é isso que tem acontecido. Pelo contrário, vimos, por exemplo, o Partido Comunista Francês estar inquieto e hostil com a presença dos estrangeiros na classe operária quando eles eram cada vez mais numerosos. Penso que as categorias em questão, direitos humanos, multiculturalismo, etc, devem ser praticadas no interior da hipótese comunista que é a sua verdadeira casa. O parlamentarismo democrático não se mostra um verdadeiro asilo da proteção dos pobres e do acolhimento dos estrangeiros.  

Não se pode defender uma soberania nacional e democrática contra uma imposição de Bruxelas, das instituições financeiras e de países com uma prática imperialista, ou isso é um exercício do passado?  

Penso que o exercício político que consiste em retornar ao campo nacional, sob o pretexto que o capitalismo é mundial, fará o jogo da extrema-direita. O verdadeiro beneficiário, no interior do sistema parlamentar democrático, de toda a figura que reivindica o valor nacional contra o capitalismo mundializado é a extrema-direita. É preciso, pelo contrário, ultrapassar o nosso atraso internacionalista. Estamos na situação paradoxal que, em muitos campos, o capitalismo é muito mais internacionalista que nós. E isso é um problema. 

Em Portugal discutiu-se há pouco tempo a eutanásia. Para uma parte importante da sociedade essa medida é vista como progressista, para que as pessoas tomem controlo sobre o final da sua vida.  

Desconfio muito dessa medida. Pode ser defendida em condições de saúde muito graves, com acordo do doente e o apoio do médico. Mas desconfio muito do capitalismo nesse ponto. Vejamos, por exemplo, a discussão atual da lei sobre as reformas. Penso que o capitalismo moderno é cada vez mais intolerante à existência prolongada de gente que não é nem consumidor privilegiado nem trabalhador assalariado. Dá a impressão que o capital não pretende manter esse tipo de gente. As pessoas não querem a reforma das reformas. Mas o capitalismo não percebe o interesse em gastar parte dos rendimentos em pessoas que, na sua lógica, não são interessantes. Por isso, aquilo que facilita levar as pessoas a morrer preocupa-me. Agora que o capitalismo está estabelecido a uma escala mundial pode ver-se que não está na situação de conseguir dar trabalho a todo o mundo. A massa de desempregados mundiais é enorme e provoca a existência daquilo que eu chamo o proletariado nómada. Milhões de pessoas que se deslocam pela terra em busca de um trabalho. Os capitalistas querem assegurar o controlo absoluto da automatização e da robotização, para terem cada vez menos necessidade de trabalho humano. Na gestão capitalista mundializada há o desejo de diminuir a população, porque há cada vez mais gente que no quadro do desenvolvimento capitalista não tem um lugar. Por seu turno, a hipótese comunista deve sublinhar que o capitalismo não é capaz de diminuir a duração da jornada de trabalho. Nos cálculos que foram feitos, era possível reduzir o trabalho para 20 a 25 horas semanais. Mas essa oposição encarniçada a essa medida deve-se aos capitalistas não quererem reduzir a apropriação da mais-valia dos trabalhadores. O preço a pagar é que há cada vez mais gente que está “a mais” no sistema capitalista. Isso resulta em leis mortíferas que vão diminuir as reformas, lançando milhões de pessoas na miséria. 

Entrevista de Nuno Ramos de Almeida, publicada no Contacto.

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