Francisco Bethencourt. “A modernidade europeia tem no seu seio o racismo”

(Fotografia de Ana Brígida)


Não existe um racismo como se fosse algo natural. Existem racismos produto de projectos políticos de dominação.
Há um piscar de olho da história no facto de o português Francisco Bethencourt ser titular da cátedra, no King’s College, outrora ocupada por Charles Boxer, notável historiador britânico com um enorme conhecimento sobre o colonialismo português. O livro que justificou a conversa que se segue, “Racismos, das Cruzadas ao Século xx”, é uma obra muito interessante. O autor não acredita na existência de um racismo único como se fosse uma causa natural. Para ele, o racismo está directamente ligado a alguns períodos da história e foi desencadeado por projectos políticos que pretendiam monopolizar recursos económicos, sociais e políticos. O historiador que está, neste momento, a trabalhar num livro sobre a história das desigualdades, tenta responder às razões que podem transformar o preconceito em genocídio.
Havia um conjunto de anedotas racistas nos tempos do PREC (Processo Revolucionário em Curso) sobre o presidente de Moçambique Samora Machel. Numa delas Samora anunciava o fim do racismo numa conferência de imprensa, garantindo que não havia mais brancos e pretos, terminando com o seguinte pedido: “Peço que se sentem os azuis-claros à frente e os azuis-escuros atrás.” O racismo é uma inevitabilidade?
Duvido, por uma simples razão: uma das coisas que tentei mostrar no livro é que não existe racismo inato. Não é algo que exista em todos os países, nem em todos os períodos históricos, nem com todas as pessoas. Há períodos racistas, mas muito localizados, nalguns casos com larga duração e com experiências de extermínio devastadoras que atingem muita gente. Mas é muito circunstancial e não vejo que esteja para durar pelos séculos adentro. Pelo contrário, numa situação em que existem, como hoje, extensas migrações e movimentos de integração da economia à escala supranacional. é evidente que vai haver muito mais tensões pontuais e conjunturais mas, num tempo longo, eu tenho dúvidas de que o racismo consiga manter-se com estas transformações.
Mas ao associar, no seu livro, o racismo a um mecanismo de legitimação política que aparece como garante da manutenção das hierarquias e das desigualdades, não deixa antever que haverá racismo sempre que existir conflito político?
Há possibilidade de haver racismo mas, entretanto, as grandes divisões de origem étnica estão a esbater-se. É relativamente fácil identificar, até ao século xx, comunidades alvo de discriminação, como os arménios no Império Otomano, os judeus na Alemanha nazi e, antes, no Império Russo, ou os africanos que tinham sido escravos nas Américas. Penso que isso não é verdade para os dias de hoje. O futuro vai ser muito mais interligado e misto. Se, no passado, as fronteiras raciais não tinham muita base de sustentação – Von Humboldt já tinha referido a dificuldade de manter algumas alegadas divisões nas populações negras africanas – , no futuro será ainda menos possível manter essa efabulação de fronteiras raciais. Com tantas migrações e processos de globalização económica, parece-me impossível de manter.
Mas a chamada guerra das civilizações, o crescimento de um sentimento islamofóbico na Europa e o aumento do fundamentalismo no mundo árabe não são desmentidos desse desaparecimento do racismo?
Eu vejo isso como um estertor, a curto prazo, de um modelo de identificação e de criação de dinâmica de conflitos que não me parece que tenha um longo futuro. Creio que o desaparecimento do racismo é inevitável, mas não será imediato. Não vai acontecer no nosso tempo, e provavelmente não nas próximas duas ou três gerações. O racismo, no meu entender, é sempre devido a motivos políticos e à luta para a monopolização de recursos. No caso do Médio Oriente é muito mais complicado, temos que o aspecto confessional que se tornou muito mais importante que a ficção racial. Vejamos as lutas entre sunitas e xiitas...
Mas essas divisões religiosas configuram de alguma maneira uma forma de racismo. A divisão entre sérvios e bósnios não é étnica, são originariamente as mesmas populações, mas é religiosa...
Exactamente, mas também é uma luta por recursos. 
Associa o racismo a duas características: a primeira é a existência de um preconceito durável combinado com uma prática reiterada de discriminação em relação a um grupo populacional. O preconceito não tem uma base anterior ao racismo e capacidade de durar mais? 
Sim, dura mais. Tem uma base mais difundida e mais difusa. Quando eu abordo o caso da França do século xvii, verifico que o preconceito contra os judeus está muito difundido, até em pessoas que se batiam contra os preconceitos em geral, como é o caso de Voltaire. Mas esses preconceitos estavam relativamente contidos e nunca se transformaram em perseguição sistemática em França. Mesmo quando analisamos o caso Dreyfus [oficial francês de origem judaica falsamente acusado de traição], que teve uma enorme repercussão, verificamos que ele ficou relativamente contido. Levou tempo, mas acabou por ser resolvido. 
Mas não está escondido o racismo por baixo de uma fina camada de verniz? No caso da Jugoslávia havia estatísticas que mostravam que a maior parte da população se considerava jugoslava, havia uma percentagem elevada de casamentos mistos e, no entanto, a guerra aconteceu...
Esse é um elemento angustiante. Quando surge o projecto de revisão nacionalista dos sérvios e croatas, aí é que se cria uma dinâmica de afirmação identitária que quebra todas as formas de integração nacional que existiam anteriormente: dividem-se regiões, comunidades, aldeias e famílias numa dinâmica imparável. Esse aspecto mais angustiante deriva directamente do nacionalismo do século XIX, um nacionalismo que se desenvolve, primeiro, com uma concepção generosa e internacionalista, que defende a criação de cidadãos e de uma democracia – embora as mulheres não votassem e as populações eleitorais fossem definidas pelo nível de riqueza, mas em que havia, ainda assim, uma noção de cidadania. Mas depois, com o implodir do Império Austríaco, com o aparecimento dos sentimentos nacionais dos checos e dos húngaros, com os conflitos que isso foi gerar, mesmo no seio dessas novas nações, com as minorias alemãs dos sudetas, na Checoslováquia, e as minorias romenas na Hungria, isto leva à criação de um nacionalismo que não é de cidadania. É um sentimento nacional que se realiza numa perspectiva de exclusão: quem pertence e quais são os excluídos da nação? É o lado escuro da democracia, o lado da exclusão. Este projecto nacionalista vai fundir os preconceitos raciais com a nação. É também uma ideia efabulada: a ideia de que existe uma descendência colectiva e de exclusão dos outros é algo criado e imaginado. Foi o que aconteceu na Jugoslávia, onde nada fazia prever a explosão que se verificou. 
No caso da Jugoslávia, essa emergência dos nacionalismos agressivos é sobretudo devido à morte de outros discursos identitários como os ideológicos, que opunham comunismo e capitalismo?
O discurso comunista é anti-racista. É um discurso de conflito de classes que é completamente contrário ao discurso nazi do conflito de raças, que deriva do nacionalismo do século xix. Estas duas visões contrapõem-se. Tanto no caso da União Soviética como no da China, que é uma coisa mais complicada, o discurso comunista é anti-racista, embora antes da II Guerra Mundial, e mesmo durante e depois, Estaline faça deportações de determinados povos considerados potencialmente aliados dos invasores estrangeiros. Há povos inteiros que são considerados mais suspeitos que  outros, como os tártaros da Crimeia. Apesar disso, é preciso lembrar que Estaline tinham um discurso anticolonialista: é autor, já no tempo de Lenine, dos textos mais importantes sobre nacionalidades do partido bolchevique. 
Mas as divisões étnicas numa determinada sociedade não podem expressar também divisões de classe? Por exemplo, na Índia, o sistema de castas faz uma hierarquia entre os povos invasores e as populações invadidas. Essa divisão não tem também uma natureza de classe legitimada como casta?
Pode ser subsumido pela questão das classes, mas são duas realidades distintas. O marxismo é um referencial útil para analisar determinadas situações, o que eu critico é essa pretensão de explicação total. No caso do racismo, a análise de classes feita pelo marxismo não explica o fenómeno. A Índia é um caso interessante, um caso de racismo interno: as castas funcionam como uma forma de discriminação que tem a ver com a origem étnica. Mantém uma hierarquia social que não coincide com a de castas. Há vários factores, por exemplo, a religião: os muçulmanos não participam no sistema de castas. Ambedkar, que foi um dos principais redactores da Constituição indiana e que era intocável e contemporâneo de Gandhi, defendia que só era possível acabar com a discriminação dos párias acabando com o sistema das castas e as suas características religiosa, tendo-se no fim da vida convertido ao budismo. 
De alguma forma, para isso acontecer era necessário alterar o hinduísmo e a ideia de reencarnação?
Isso é o que equilibra todo o sistema: no momento em que as pessoas podem, caso se tenham comportado correctamente, reencarnar numa casta mais acima, isso permite dar a todos alguma esperança. 
É um pouco a situação do catolicismo, com a promessa do céu. Mas não acha que existe uma tradução do racismo nas diferenças sociais nos Estados Unidos, em relação aos negros? 
Abordando o papel da segregação nos Estados Unidos, verificamos uma coisa muito interessante: é a segregação racial que permite à população branca do sul dos Estados Unidos que se integre. Há uma integração de uma maioria étnica à custa de uma minoria – um processo semelhante ao que aconteceu na península Ibérica durante a Idade Média: a segregação dos cristãos-novos e dos mouriscos funcionou como mecanismo de integração dos cristãos-velhos pobres. A discriminação permite dar um sentido de superioridade às camadas pobres dos cristãos-velhos, que têm um estatuto económico inferior a determinadas populações discriminadas.
Um dos objectivos que colocou no seu trabalho foi entender em que medida o racismo pode transformar-se num genocídio. Caracteriza o racismo como a existência de um preconceito somado a uma prática discriminatória, mas casos extremos como o dos arménios e do Holocausto não podem ser explicados por uma certa irracionalidade do preconceito? Havia alguma coisa em que os judeus podiam ameaçar Hitler?
Eu penso que há dois elementos que explicam o que aconteceu na Alemanha nazi. Primeiro, Hitler desenvolveu preconceitos de raça que existiam já desde o século xix na Alemanha. Segundo, o objectivo do racismo não é apenas justificar hierarquias sociais, o racismo tem a ver com projectos políticos para afastar potenciais concorrentes: os judeus na Alemanha nazi ou os arménios no Império Otomano são concorrentes. 
Mas como representavam os judeus uma ameaça? Eram ultraminoritários... 
Por isso é que eu digo que há dois elementos: uma parte tem que ver com o preconceito e outra é a capacidade de mobilização que esse preconceito pode gerar. Foi disso que Hitler se aproveitou: racializou o conflito político, mobilizou a população e acusou todos os opositores de estarem feitos com os judeus. Transformou comunistas, sociais-democratas, liberais em judeus, tornou-os equivalentes a judeus. Primeiro, demonizou os judeus e depois racializou o conflito político, conseguindo uma forma eficiente de afastar os seus opositores.
Pode ser considerado uma reacção ao processo de modernização?
Aí é que eu tenho algumas dúvidas, porque o fascismo é uma forma extrema de nacionalismo, e este faz parte do processo de construção da modernidade europeia: a modernidade europeia tem no seu seio o racismo. 

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