O admirável mundo "novo" que saiu debaixo das pedras

(Foto de Thomas Dworzak) 

Uns dias antes de morrer o escritor Stieg Larsson teria fornecido à polícia dados sobre o assassinato do primeiro-ministro social-democrata sueco Olof Palme. O conhecido autor da trilogia "Millennium" teria entregue 15 caixas de documentos à polícia sueca que apontavam que o político social-democrata tivesse sido morto por um extremista de direita a mando do regime do apartheid. Segundo a polícia a pista não era correcta e o presumível assassino, um antigo militar de nome Bertil Wedin, que Larsson alegava ser um mercenário com ligações aos serviços secretos da África do Sul, desmentiu a acusação, dizendo que não gostava do político de esquerda mas não o tinha assassinado. A polícia sueca chegou a marcar uma conversa com o militar, agora com 73 anos, em Chipre, onde ele reside, mas ele nunca chegou a aparecer.
Stieg Larsson morreu pouco tempo depois de ter entregue estas supostas provas, vítima de ataque cardíaco. A sua companheira, Ewa Gabrielsson, disse ao jornal "Svenska Dagbladet" que Larrson não saiu muito bem impressionado do seu primeiro encontro com a polícia, chamando-lhes "idiotas" e contando que teve de " dar-lhes uma aula sobre as diferenças entre nazis e socialistas".
Antes de ser escritor, Larsson era um jornalista de investigação. Empenhado em causas, dedicou toda a sua vida a investigar os nazis, a extrema-direita sueca e a denunciar o racismo e os crimes contra as mulheres.
A sua escrita jornalística não é naturalmente igual aos seus romances, mas há um caldo de preocupações comuns. Ambas nos mostram uma realidade que vai para além do bilhete postal habitual que vemos quando pensamos na Suécia. Como se houvesse uma face negra no aparente paraíso.
Como hoje acontece noutras paragens, como a Ucrânia, as elites políticas nacionalistas tinham colaborado abundantemente com os nazis. Dizia-se por graça entre os suecos que os nazis demoraram três semanas a ocupar a Noruega, uns dias a fazer o mesmo à Dinamarca e bastou-lhes fazer um telefonema para a Suécia.
Stieg Larsson não acreditava que se devesse apagar o passado, nem permitir que ele se infiltrasse no presente e prolongasse no futuro. Defendia que não havia transigência possível com nazis em democracia. Não era uma questão de correlação de forças, em que se permitia que a extrema-direita actuasse livremente; o seu discurso alastrava e infectava a sociedade. Para ele, partidos nazis que se afirmavam "democratas" e que escondiam as antigas cruzes gamadas dos símbolos com flores, como é o actual símbolo do partido dos Democratas da Suécia (SD), apenas pretendiam ganhar votos. Bem podiam esconder as convicções dos seus fundadores e proibir os militantes de usar fardas nazis nos comícios, mas não deixavam de ser a outra face dos grupos de extremistas armados que gravitavam à volta desses partidos. E as suas campanhas contra os emigrantes e contra os árabes eram o caldo cultural que permitia a agressão. Palavras de ordem, com sucesso eleitoral, como o slogan dos SD, "Fim às violações colectivas, fim à imigração", eram já por si uma agressão e a antecâmara de uma situação de massacre.
Os perigos que Stieg Larsson referia eram verdadeiros e seria sem surpresa que o escritor teria visto os resultados das eleições de 2010, em que este partido de extrema-direita conseguiu pela primeira vez entrar no parlamento, com 20 deputados e 5,7% dos votos. Neste momento, as sondagens dão-lhe cerca de 20% dos votos e alguns estudos afirmam que pode vir a ser o primeiro partido mais votado na Suécia. Segundo a analista principal da zona escandinava da conceituada revista The Economist, é apenas uma questão de tempo, a DS participar nos governos desse país. O "cordão sanitário" que lhe fizerem os outros partidos devido Às suas origens nazis, vai cair a golpes de pragmatismo eleitoral. "A classe política sueca, mais tarde ou mais cedo, normalizará as relações com o partido anti-imigração. É uma questão de 'quando' e não de 'se', uma vez que a lógica do poder parlamentar funcionará beneficiará os DS. O partido tornou-se a terceira maior força parlamentar em 2014, com 12,9% dos votos, mas as sondagens têm mostrado que, neste domingo, pode aumentar significativamente o seu apoio (para 20%); em última análise, pode até tornar-se o segundo maior, senão o maior partido da Suécia", escreve a analista da Economist Ana Andrade no Expresso. Esse processo de aceitação será precedido pela a aceitação, por parte de muitos outros partidos políticos, de grande parte das suas teses sobre a imigração e o perigo muçulmano.
Essa dita "normalização" dos ex-nazis, não nos pode impedir de ver a sua natureza, e relembrar que até há algum tempo as investigações jornalísticas sobre essa galáxia negra não se faziam sem perigo na Suécia dos brandos costumes. A 14 de Junho de 1990, os jornalistas Peter Karlsson e Katarina Larsson, que escreveram vários artigos de investigação, muitos deles na revista que dirigia Stieg Larsson, sobre as redes de financiamento dos grupos neonazis suecos, sofreram um atentado à bomba. Sobreviveram com ferimentos graves. A polícia nunca conseguiu identificar os autores do atentado, mas as pistas apontavam para membros da Vitt Arisk Motstand (VAM - Resistência Ariana Branca) envolvidos em vários crimes, nomeadamente no assassinato de um sindicalista, com o recurso a uma bomba colocada no carro, como no caso dos dois jornalistas. No caso do sindicalista, a polícia vigiava os autores do crime e conseguiu detê-los no seguimento do atentado.
Lendo o livro "Expo Files", que contém parte das investigações de Stieg Larsson para a sua revista, "Expo", podemos perceber a importância dos partidos políticos legais na criação do caldo cultural que permite os crimes de ódio. Não foi por acaso que os jornalistas e os cidadãos começaram por pensar que o atentado de Oklahoma City, que vitimou cerca de 170 pessoas e feriu 450, e o massacre perpetrado pelo norueguês Breivik, que matou 77 pessoas, tinham sido cometidos por fundamentalistas islâmicos.
A opinião pública em geral está programada para pensar que todo o acto de violência está inevitavelmente ligado ao terrorismo fundamentalista islâmico. O discurso da islamofobia passou do pequeno círculo dos nazis e contagiou grande parte da sociedade: a forma como todos lemos a realidade é prova disso.
Larsson alertava também para o discurso dominante nos órgãos de comunicação social como divulgador de estereótipos que podiam ser enganadores. No seu artigo no livro "Debatten om hedersmord: feminism eller rasism?", intitulado "A violência sueca e não sueca sobre as mulheres", analisa em pormenor dois assassinatos: os da sueca de origem curda Fadime e da jovem sueca Melissa. O jornalista usa o expediente de as tratar pelos seus nomes sem apelido durante a primeira parte do artigo, como faz a imprensa sensacionalista quando as mortas são mulheres jovens.
A primeira foi morta pelo pai, que não aceitava que ela fosse uma jovem emancipada. A segunda foi torturada, violada e assassinada pelo ex-namorado, um extremista ligado a bandos de motoqueiros. Larsson contesta a interpretação dominante de que estes crimes seriam muito diferentes. Segundo a opinião pública e a comunicação social, no primeiro crime estaria em causa a cultura retrógrada em relação às mulheres dos curdos e a violação da jovem sueca seria apenas um vulgar caso de polícia. Para o escritor ambas tinham muito mais em comum do que a plácida sociedade sueca gostaria de admitir. Os crimes contra as mulheres são fruto de uma sociedade patriarcal que tolera as agressões às mulheres e não lida bem com a sua emancipação. Para nos convencer, Larsson revela-nos uma realidade para nós desconhecida. Anualmente mais de 20 mulheres são assassinadas pelos seus companheiros e amigos no país. Existem neste maravilhoso paraíso mais de 200 centros para acolher mulheres vítimas de violência, uma multidão que esconde uma ainda maior: grande parte das mulheres têm medo e vergonha de denunciar a violência e recorrer a este tipo de ajudas. A violência contra as mulheres não é um problema cultural com curdos e outras nacionalidades com estranhos costumes; encontra-se inscrita no coração da sociedade sueca. "É impossível comparar a violência exercida contra as mulheres e dizer qual dos dois assassínios é mais cruel. Neste sentido, Fadime e Melissa são irmãs, apesar do que possam dizer os defensores de uma certa antropologia cultural", defendia Stieg Larsson, que não estava disposto a perdoar os crimes contra as mulheres relativizando-os.

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