O Natal é vermelho

(Che Guevara aterra na Argélia, fotógrafo desconhecido)

Aproximava-se o Natal. Em casa cheirava a frio e a madeira nova. O móvel parecia-me estranho. Era encerado. Uma espécie de cómoda oca. Seria um bar daqueles kitsch? Já não me recordo. Tinha umas chaves. Lá dentro estavam prendas. Apenas uma era minha. Na nossa casa estavam brinquedos dados por camaradas na legalidade para as casas clandestinas em que viviam crianças. Era membro de um comunidade embora não nos conhecêssemos: as crianças das casas clandestinas. Hoje parece-me uma quebra das regras de segurança, a distribuição de prendas. E não percebo como chegaram os brinquedo a cada um de nós. Mas na altura isso fazia-me sentir que não estávamos sozinhos.
Tinha a nítida sensação de pertencer a um grupo unido por regras de fraternidade. Aqui estavam pessoas de muitas raças e países. Na Argélia andava na escola francesa. Estudávamos lá argelinos e filhos dos refugiados políticos. A guerra da independência tinha sido há poucos anos. O sangue tinha corrido pelas ruas. Milhões tinham morrido nos bombardeamentos dos franceses. A tortura durante a guerra tinha atingido níveis nunca vistos. A FLN (Frente de Libertação Nacional Argelina) tinha pedido aos militantes que tentassem aguentar sem falar três dias – apenas três dias, para permitir mudar os contactos e resistir à repressão. Depois da independência a cidade viveu um sonho estranho. Lembro-me dos aromas das especiarias e do ruído das manifestações. Também me ficou a recordação do fedor a excrementos nos elevadores dos prédios abandonados pelos franceses e ocupados por argelinos que nunca tinham vividos em prédios europeus. Mais tarde o meu pai e a minha mãe contaram-me que uma noite tinham conhecido aquele que mais tarde seria lembrando com o nome de Che. Já adolescente, interroguei o meu pai para saber como ele era. Será que se vê o heroísmo nos heróis? O meu pai insistiu que ele era sobretudo calado e tímido.
Eu frequentava uma escola de que só me lembro pelo cheiro a medo. Nos intervalos brincávamos às guerras. Os professores franceses que ainda restavam, quando nos apanhavam batiam–nos e ameaçavam-nos com cães. Os meus pais descobriram que éramos espancados e confrontaram os professores, que negaram terminantemente as agressões. Um dia, alguns de nós montámos uma emboscada para apedrejar um dos agressores no meio da confusão do pátio. Lembro-me que a minha pedra e de um amigo argelino lhe acertou em cheio. Quando nos bateram a seguir quase não doeu. Anos mais tarde, em França, numa casa de apoios de camaradas do PCF (Partido Comunista Francês) em Paris, o meu pai comunicou-me que íamos entrar em Portugal. Por causa dos “maus”, a PIDE, tinha de escolher um nome. Um nome diferente do meu? Sim. Escolhi Sérgio. Passámos a fronteira por um sítio que os meus pais me explicaram ser um grande jardim. Era de facto grande. Caminhei até cair. O meu pai levou-me o resto do caminho às costas. Acordei no dia seguinte a vomitar, numa pensão em Chaves, com um daqueles lavatórios de ferro. Chegamos a Lisboa e arranjamos uma casa clandestina. A minha mãe mobilou-a com todos os cuidados conspiratórios: a maior parte da mobília na área social, para passarmos por uma família normal. Gastou menos que o previsto, estava feliz. Mas mais tarde o camarada responsável pelas casas criticou-a por ter gasto dinheiro num esquentador. A minha mãe nunca conseguiu esquecer o facto, quando, anos depois, voltámos para a legalidade e apoiávamos o aparelho clandestino. Pediram uma lista de coisas à minha mãe. Leu-a e respondeu, dura: “Diz ao fulano (o camarada com quem ela tinha discutido) que compro tudo menos o esquentador.”
Tive a sorte de nascer num tempo em que pude ver o escuro e a madrugada. Mesmo quando anoitece, sei que é possível ver o Sol nascer com uma claridade que varre tudo ao seu redor, nem que se tenha de fixar a cara de alguns e escolher uma pedra.

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