Martín Caparrós. “Tenho sempre a consciência suja, é a única forma decente de a ter”

(Fotografia de João Porfírio)


Viajar e escrever é uma forma de enganar o tempo. Quando viajamos conseguimos que o tempo dure um pouco mais. É autor de uma obra monumental em que a reflexão se mistura com a ficção. Tem em Portugal publicado um enorme livro, de mais de 600 páginas, chamado “A Fome”. Martín Caparrós escreve e reescreve, na sua escrita, a invenção do mundo, procurando sempre caminhos para um mundo melhor.
Um fotógrafo norte-americano, James Nachtwey, que trabalhou na agência Magnum e se notabilizou em cenários de guerra e epidemias de fome, afirmou um dia: “Eu vi isto e estas fotografias são o meu testemunho. Os acontecimentos que eu fotografei não devem ser esquecidos e, sobretudo, não devem voltar a repetir-se.” Mas, ao mesmo tempo, defendia que no terreno um fotógrafo deve escolher entre cumprir a sua profissão e tirar fotografias e tentar salvar pessoas sobre as quais está a reportar. Nunca sentiu esse dilema durante a preparação d’“A Fome”?
Nachtwey referia-se a situações de crises humanas e epidemias muito graves, como aquelas que conhecemos nas famosas imagens do Biafra, em que milhares de pessoas não têm nada para comer. Felizmente, essas situações são mais raras. Menos de dez por cento daqueles que são afetados pela fome sofrem-na devido a esse tipo de epidemias. A esmagadora maioria dos que passam fome passam-na de uma forma muito menos espetacular, a sua fome é menos visível: simplesmente, comem menos do que necessitam, menos nutrientes do que precisam. Não morrem de fome, morrem de doenças em resultado destas carências. Qualquer pequena doença, que a si ou a mim não faria nada, é mortal para eles.
Mas quando alguém lhe diz, no livro, que para resolver a sua vida precisava de ter duas vacas, não fica tentado a salvá-lo?
Não posso ajudar diretamente todas as pessoas. A minha maneira modesta de ajudar é contar a história dessas pessoas, mas às vezes tinha vontade de o fazer imediatamente. É uma história um pouco comprida: estava numa pequeno lugarejo, não muito longe dessa pessoa que precisava de duas vacas, em que uma mulher me estava a contar como tinha contraído uma doença prolongada, fora marginalizada na aldeia e perdera o seu rebanho. E que lhe restavam só duas cabras, que já não iriam reproduzir-se, porque ela já não tinha um macho. Estávamos a falar na sua cabana, onde não havia praticamente nada, uma esteira e pouco mais. No lugar onde estávamos sentados, contra a parede, havia uma placa de madeira mourisca, muito velha, que tinha umas frases do Corão inscritas. Estes objetos costumam ser usados nas madraças para as crianças aprenderem o livro sagrado. Eu comentei, durante a conversa, que a placa era muito bonita. A senhora disse que queria oferecer--ma. Era praticamente a única coisa que havia em sua casa, quis recusar, mas a tradutora dissuadiu-me, explicando-me que seria uma grande ofensa. Então agradeci-lhe a grande honra que me dava e disse que queria também oferecer-lhe algo: um bode (o que lhe resolveria o problema da reprodução das cabras). Ela ficou contentíssima. Mas acontece que naquele dia não havia mercado, para comprar o animal. Então perguntei-lhe quanto custaria o bode mais um ano de alimentação do animal, que eu disse oferecer com uma condição.
Qual condição?
Que o bode tivesse o meu nome: Martín. (Risos)
E tem notícias do Martín?
Não, mas deve estar grande (risos). Mas a história não acaba aqui. Passado poucos dias, saí da região e fui para Paris. Nos aeroportos até lá foi uma confusão viajar com a placa, porque, hoje, tudo o que é islâmico faz disparar os alarmes. Em Paris, ia a casa de uns primos. Mas como cheguei muito cedo, fui a um café e comprei uns croissants para o pequeno-almoço. Quando encontrei os meus familiares contei-lhes a história da mulher, e a minha prima perguntou-me: “Quanto é que te custou o bode e a alimentação?” Nessa altura fiz as contas e percebi que era menos que aquilo que eu tinha pago pelos croissants – e tinha mudado a vida a uma mulher.
Há um ditado em português que diz “não há fome que não dê em fartura”. Mas no caso de África, que conta no seu livro, parece ser o contrário, havia muito menos gente com fome nos anos 70 do século passado do que hoje. Porquê?
Cada caso é diferente, por isso decidi que este livro fosse uma viagem por vários lugares, porque em cada um deles queria mostrar as estruturas e as causas diferentes da fome. Em geral, não se deve generalizar, mas no caso de África estou convencido de que a fome está ligada à quebra do sistema tradicional: muita gente que sobrevivia da sua pequena terra, em muitos casos deixou de o conseguir fazer, perdendo a sua propriedade e o uso da terra.
No livro fala da imposição do chamado Consenso de Washington [políticas económicas que se baseiam nos cortes dos apoios sociais, desregulamentação do mercado de trabalho, privatização de setores públicos e abertura de mercados a produtos do estrangeiro, normalmente impostas pelo FMI e Banco Mundial aos países que “ajudam”] e dos cortes dos apoios dos Estados aos agricultores africanos...
Vamos por partes: a perda das terras, o fim dos apoios estatais aos agricultores, a manipulação dos preços internacionais, que arruinaram os agricultores de muitos lados e que, por isso, foram praticamente expulsos das suas terras para os subúrbios das grandes cidades, onde vivem muito, muito pior, levaram a este resultado: há muito mais gente com fome do que há 40 anos.
No seu livro revela que temos capacidade para alimentar mais de 12 mil milhões de pessoas, mas não conseguimos alimentar os cerca de 7 mil milhões que cá vivem, havendo apesar 900 milhões de pessoas com fome. Por que razão a sua situação é socialmente invisível?
Temos recursos para alimentar toda a gente, se os partilhássemos. Não o fazemos, não porque somos maus, mas devido a um sistema de produção e circulação de bens que faz com que se concentrem as riquezas nos nossos países. Gosto de dar um exemplo, talvez primitivo, mas que permite perceber esta concentração da riqueza e dos alimentos: se temos dez quilos de cereais, podem-se vender a dez pessoas, que ficam com um quilo de cereais para comer, ou podem-se vender esses 10 quilos a um ganadeiro que os dá de comer a uma vaca. O animal transforma esses 10 quilos num quilo de carne. Essa carne será vendida a uma pessoa que tem dinheiro para a pagar. Se houvesse outras decisões políticas, as coisas poderiam ser mais repartidas. Comeríamos provavelmente um pouco menos de carne, mas toda a gente teria o que comer. Mas tal como estão organizadas as coisas, tudo é feito para prover os mercados mais ricos e deixar os países mais pobres à míngua.
Para si, a razão da fome não tem uma explicação global, não se pode dizer que a fome é causada pelo sistema capitalista?
Pode-se, mas esse sistema causa a fome de maneiras distintas e com mecanismos diversos. É um sistema que pensa na maximização do lucro, e não em dar a todos o que eles necessitam. Poderíamos pensar: o problema é que estamos com este sistema tão interiorizado em nós que nem nos ocorre que poderia haver um sistema económico com o objetivo de distribuir por todos aquilo de que as pessoas necessitam, em vez de ter como objetivo dar mais àqueles que já ganham mais. Pode haver outras formas de fazer as coisas. É óbvio que o capitalismo é o culpado pelo facto de, num planeta que produz mais que o suficiente, haver tanta gente que não tem o mínimo. Há 40 anos havia a desculpa de que o planeta não produzia o suficiente para todos, mas com o progresso tecnológico e a revolução verde produz-se agora mais que o suficiente.
A fome contemporânea é a mais canalha da história: nem sequer tem a justificação de que não há comida suficiente.
A ajuda humanitária faz parte desse sistema que gera a fome?
De alguma forma, é muito útil que em situações de emergência haja mecanismo de socorro para impedir que as pessoas morram de fome nas alturas de catástrofe; mas o problema é que, a médio prazo, esses sistemas de socorro, que vão dando um punhado de cereais, perpetuam o mecanismo e o sistema: tornam as vítimas da fome mais dependentes daqueles que as ajudam e continuam sem lhes dar as forma de saírem desse ciclo.
Há um exemplo muito interessante no seu livro: há um ano em que a Etiópia consegue uma colheita enorme que dava para alimentar a população, guardar e até exportar, mas todos os canais de distribuição de cereais estavam nas mãos de ONG que tinham como norma distribuir apenas cereais dos seus países, comprados pela ajuda internacional. Resultado: isso provocou a queda do preço dos cereais, o apodrecimento da colheita etíope e o empobrecimento dos camponeses. No ano seguinte, a colheita foi catastrófica...
Deram cabo do mercado local. Mas toda a lógica é perversa. Eu cito passagens de panfletos da organização mundial responsável pelo combate à fome que dizem que é preciso ajudar as pessoas que têm fome, porque é feio que haja gente assim, porque nós somos boas pessoas, mas avisando que, se não os ajudamos, esses países vão converter-se em viveiros de terroristas ou, pior, essas pessoas irão para os nossos países onde há comida.
Mas de alguma forma não podemos dizer que até algumas denúncias da fome fazem parte do sistema? Denunciamos a fome, até podemos fazer um festival do tipo Live Aid, as nossas consciências descansam e o mundo continua igual...
Sim, é um pouco assim: os sistemas de ajuda não servem apenas para manter a dependência daqueles que recebem a ajuda, mas também para lavar as consciências daqueles que a dão.
Quando acabou o livro, sentiu-se de consciência lavada?
Não. Tenho sempre a consciência suja, parece-me que é a única forma decente de a ter. Suja, incómoda, inquieta, sempre pensando que outras coisas é possível fazer.
Numa entrevista disse que não gostava da ideia de um intelectual engajado, o que seria, na fórmula de Gramsci, um intelectual orgânico. Não gosta de um intelectual alinhado num partido, numa causa, num coletivo e num movimento?
Não é o mesmo um coletivo que um partido.
Mas um partido não é uma forma de coletivo?
Sim, mas um coletivo não é uma forma de partido. Um partido é um subconjunto do conjunto “coletivo”. E o partido é uma forma particularmente autoritária de um coletivo. E em geral, quando se pensa em intelectual orgânico pensa-se num intelectual inscrito num partido de tradição de vanguarda. Isso, a mim, parece-me sinistro, porque são intelectuais que funcionam como porta-vozes: não como discurso pensante e questionador, mas como amplificadores do que o outro lhe diz para dizer. A pretexto de que o outro sabe o que o povo necessita ou lhe convém. Neste sentido, estou contra a ideia de intelectual orgânico, estou a favor da ideia do intelectual como alguém que incomoda.
Mas é sempre um intelectual individualista?
Não, não necessariamente. Alguém que crê que o seu papel dentro de um movimento coletivo é a crítica e a dúvida. Tentar pensar contra, incluindo contra o movimento de que faz parte, e assim ser útil ao movimento. Não com um fim individualista, mas para o bem comum.
O seu papel é, justamente, colocar em dúvida tudo o que se faz.
Mas isso não traduz também uma conceção ideológica da moda? Depois dos anos 70 começou-se a condenar qualquer ideia de projeto global e mesmo a ideia de que é possível transformar a realidade.
Não creio que isso tenha terminado.
O que acabou foi a forma moderna que isso tomou. Essa forma, que é basicamente a forma marxista-leninista, teve resultados nefastos. Aqueles que querem transformações radicais, entre os quais me conto, procuram as maneiras como será possível mudar as coisas. Quando comecei a militar politicamente, nos anos 70, era muito fácil, já sabíamos onde queríamos ir e como fazer, e tínhamos o caminho aberto para irmos quase de olhos fechados, se quiséssemos. Sabemos hoje que não é assim. Não sabemos como se faz. Estamos num período mais complicado, mas ao mesmo tempo mais excitante, porque temos de encontrar formas novas de fazer as coisas a todo o momento. É dessa forma que os intelectuais podem contribuir, exercendo a dúvida, a crítica.
Mas isso não sucedeu no início do caminho anterior?
Sim. Encontraremos, com sorte, quem sabe, daqui a dez anos um caminho que durará, também com sorte, 50 anos, que depois irá um dia falhar, e teremos de procurar ainda outro. Como dizia Samuel Beckett: “Tentar sempre. Falhar. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor.”
O seu pai era psicanalista e comunista, qual é a herança que mantém?
Ele deixou de ser comunista no ano de 1963 e nunca deixou de ser psicanalista. Ser psicanalista e a ideia de escuta ativa para tratar de perceber nunca o abandonaram. A sua saída do partido comunista tem que ver com essa ideia de crítica permanente de que falávamos à pouco.
É escritor mas também foi toda a sua vida jornalista. Para si, um jornalista precisa mais de capacidade de julgar ou de ser empático?
Acho que são etapas distintas. Quando falo com alguém, eu sou o mais empático possível, para facilitar a comunicação e que me diga tudo o que quero saber. Depois quando estou no meu lugar a escrever, uso mais o juízo, não uma ideia de juízo moral, mas uma forma de exercer a crítica das ideias sobre as ideias que recebes, para tentar entendê-las e expressá-las melhor.
Numa entrevista disse que se tinha dado mal com Ryszard Kapuscinski: estava a fazer um documentário sobre ele e, a certa altura, já não se podiam aturar. Mas não é por serem parecidos?
Isso não foi nada (risos). A gente discutia o documentário, porque ele não gostava que o filmassem de uma determinada maneira, coisas assim. Questiúnculas. Depois acabámos a sair juntos. Isto foi em Buenos Aires no ano de 2002, no momento mais alto da crise, e Kapuscinski tinha vindo dar uma conferência na Fundación Gabriel García Márquez. O Kapu vinha dar essa conferência e fizemos um pequeno documentário, e tivemos essas discussões, mas no final, numa conversa, ele disse-me: “Dizem que a Argentina está em crise, mas eu não a vejo em lado nenhum.” Respondi-lhe: “Estás num hotel no centro e depois vais dar uma conferência num sítio superelegante, como é que queres ver a crise?” Então combinámos que eu o ia levar a ver a crise, nos subúrbios de Buenos Aires. Passámos um dia inteiro nisso.
Não gostou do livro dele a partir de Heródoto? Eu acho absolutamente genial a descrição dele da sua reportagem na China, sem perceber uma palavra da língua, apenas com a companhia das descrições das viagens de Heródoto.
É um bom livro, mas eu esperava mais. Gosto muito dos dois. Heródoto foi leitura da minha primeira juventude, e Kapucinski da terceira. Quando ele me disse que ia fazer um livro sobre Heródoto, fiquei entusiasmado. Mas não é o melhor livro dele.
Um aspeto interessante da sua escrita, uma coleção quase obsessiva de factos, é de ser historiador de formação?
Acho que, muitas vezes, os factos são muito eloquentes. A arte é conseguir que não interrompam o texto. A habilidade é conseguir incorporar certos dados sem que se perca a narração. A mim parece--me que isso é decisivo. E pode ser por ter estudado história, mas nunca fui historiador.
Um aspeto importante em si são as viagens. Viaja muito. São fundamentais para si? Há um cantor português, António Variações, que tem uma letra em que diz: “Só estou bem onde não estou”, é o seu caso?
(Risos) Já escrevi há pouco tempo que viajar é claramente a confissão de uma impotência, se alguém que não consegue fazer o que deseja onde está e vai buscando isso em todos os outros lugares. Mas também é outra coisa, esta espécie de luta impossível contra o tempo. Luta-se contra o tempo de duas maneiras simultâneas: por um lado, quando se viaja, o primeiro dia e o segundo dia de viagem duram muito mais tempo do que duram normalmente os dias. Quando chegas a uma cidade que não conheces, dizes: “Ontem estava em minha casa e hoje estou aqui.” O tempo parece alargar-se quando viajas, e por outro lado, o tempo vai-se marcando, como se fossem marcos que se põem no caminho. Eu sei que quarta-feira passada estava em Nova Iorque e na semana anterior estava em Buenos Aires, e recordo-me de coisas porque estava em Nova Iorque e em Buenos Aires. Se tivesse estado em minha casa não me recordaria do que estava a fazer nem nesse dia nem na semana passada. Ao ires enganando desta forma o tempo, lutas um bocadinho contra a sua fuga impossível de conter.
Essa tentativa de conter e mandar no tempo é um tema importante na sua obra. Em “História”, a sociedade organizava-se em volta da utopia de mandar no tempo.
Esse livro de que fala é um relato de uma civilização que nunca existiu. Nela, a única prerrogativa dos monarcas hereditários era declarar que forma no seu governo ia ter o tempo. Nós temos uma forma do tempo sucessiva e linear, que é uma das formas possíveis: é fruto da tradição judaico-cristã aumentada pela modernidade, mas houve outras ideias de tempo, como as do eterno retorno.
É claríssimo que tenho uma forte obsessão por este tema.
Vive em Espanha. Como vê a crescente influência do seu compatriota Ernesto Laclau na política desse país?
Comecei por me surpreender que uma palavra que sempre foi depreciativa, como “populismo”, passasse a ser reivindicada. Na tradição de esquerda, ser populista era um insulto. Laclau era uma pessoa claramente inteligente, mas não pensava o mesmo que eu, até disse na televisão que eu era “estúpido”. O problema é que o uso do seu corpo teórico, “Da Razão Populista”, no meu país, é chover sobre o molhado, é desastroso.
Mas o governo de direita atual da Argentina não é pior que o anterior?
É diferentemente mau. Não é pior. Este governo é uma merda. Mas eu recuso a chantagem que nos fazem dizendo que a alternativa a este é o anterior.
Mas há uma alternativa?
Para ganhar as eleições, não. Isso foi, aliás, a obra do kirchnerismo [peronismo do casal Kirchner, que esteve na presidência da Argentina]. Quando começaram a governar [depois da crise] havia muitas experiências sociais novas no terreno, a tentarem elaborar caminhos novos. A primeira coisa que o kirchnerismo fez foi voltar a dar confiança à representação política e à delegação tradicional de poderes –, essa foi a sua grande obra e destruiu a construção de novas alternativas. Resultado destes anos foi que em 2015 houve eleições e 90% dos argentinos votaram em dois partidos de centro-direita [o do atual presidente e o de Cristina Kirchner]. Apesar de a sociedade argentina estar tão desigual como no ano de 1997.
2/5/2016

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