Jacques Rancière. "O povo foi deixado à Frente Nacional"



O filósofo Jacques Rancière esteve em Lisboa para apresentar o seu livro “As Palavras da História”. Recentemente saiu também outra obra sua: “A Fábula Cinematográfica”. Nuno Ramos de Almeida conversou acerca das crises, da Frente Nacional e de outros acidentes da história e José Fernandes fotografou
O homem da École normale supérieure de la rue d"Ulm ("khâgne") podia ter muitos defeitos, mas teve nas mãos, como discípulos, alguns dos mais impressionantes filósofos da actualidade. Badiou, Balibar e Rancière acabaram, sobretudo estes dois últimos, de divergir do mestre. E de construir uma vasta obra, muitas vezes em diálogo gritado com o malogrado Althusser. Jacques Rancière tem uma vasta obra filosófica em que, afirmando a possibilidade de emancipação humana, se opõe às ideias de uma ciência estrangeira às paixões humanas e de uma história em que os homens são agentes comandados pela ideologia. A conversa coincidiu com o lançamento em Portugal do seu livro "As Palavras da História".
Se esta crise tivesse um nome na história, qual seria? A crise é uma ruptura? Existe apenas no domínio da polícia [conceito de Rancière que pressupõe a mera gestão das coisas] ou abre o campo à política [vista pelo autor como um momento de transformação]?
Primeiramente, não acredito que haja uma crise do capitalismo. Penso que o capitalismo se porta muito bem, e aquilo que chamamos crise é um novo modo de funcionamento hegemónico desse mesmo capitalismo, e não o início da sua decomposição. As pessoas foram surpreendidas com o início da crise financeira há uns anos, mas isso não motivou nenhuma mudança. Defendo que o conceito de crise tem pouco interesse. Faz apenas parte da gestão das coisas. É o nome que o capital e os governos avançam para dizer: "Estamos em tempos de crise, devemos ser mais obedientes que nunca." E sobretudo que nos devemos sentir culpados pela crise. Vejamos o caso da Grécia, em que nos garantem que tudo é culpa das pessoas que viveram acima das suas possibilidades. Não penso que sobre esta ideia de crise se possa retirar nenhum momento de exaltação do novo.
Na sua obra opõe-se ao conceito de ideologia como falsa consciência. Como lê a votação da Frente Nacional (FN) nas últimas europeias em França? Votaram defendendo os próprios interesses?
Não creio que haja nenhuma ilusão nesse assunto. Devemos evitar qualquer ideia de que as pessoas foram submetidas a um engano. A subida da Frente Nacional reflecte o estado geral da política em França. É consequência do sistema institucional francês, com o seu sistema eleitoral maioritário, que coloca um enorme poder nas mãos de uma minoria, o que paradoxalmente acaba por favorecer a constituição de uma força capaz de aparecer como exterior ao sistema. Mais que do significante "nacional", a FN apoderou-se do significante "popular", pensando o povo como aquele que é excluído do sistema de dominação. É preciso dizer que a ideologia da FN é pouco diferente da da esquerda e esta pouco diferente da ideologia da direita. Traduz uma espécie de fenómeno em que a esquerda socialista perdeu toda a autonomia em matéria de pensamento. Desde Reagan e Thatcher estão completamente alinhados às posições dominantes. Esta falta de diferença política faz com que a direita pareça não ter oposição. E que o debate político passe para questões como os valores familiares e nacionais. Além disso, é preciso ver que muitos dos temas que foram utilizados na campanha pela FN foram forjados pela esquerda: o ódio do imigrado e do estrangeiro, hoje em dia centra-se numa só palavra: a laicidade. Um conceito que foi produzido por gente de esquerda para estigmatizar fundamentalmente os muçulmanos.
Mas não se verifica entre os anos 60 e os dias de hoje uma espécie de mudança nos sectores populares: a consciência de classe é substituída pela nacional?
Não estou de acordo. Não creio que o significante nacional seja muito importante. Aqui joga-se mais a questão popular e o populismo. O facto de a FN ter sido estigmatizada por parte do sistema foi-lhe muito útil. Há além disso o afundamento do Partido Comunista, que tem muitas razões, mas que faz com que o "povo" tenha sido deixado ao abandono, e esse lugar de advogado popular foi ocupado pela FN. Todo a tradição de esquerda foi delapidada em 20 anos, por um lado pelo Partido Socialista, por outro pelos ditos intelectuais de esquerda. Podemos dizer que todos os significantes da ideia de uma força do povo foram deixados à força política que poderia apoderar-se deles. O povo foi deixado à Frente Nacional. Não há fervor nacionalista, mas há de facto uma força que se apodera da ideia de "povo" que se opõe ao sistema institucional. Há por parte dessa força uma rejeição dos imigrantes e daquilo que é estrangeiro, mas esse discurso circulou largamente mesmo entre a gente de esquerda.
Não podemos dizer que temos um retorno aos anos 30 e assistimos à subida na Europa de forças fascizantes?
Penso que a situação é completamente diferente. Não sou um profeta, mas é preciso dizer...
Mas de qualquer forma é um filósofo que escreve sobre a história [risos]...
Quando os filósofos fazem profecias os resultados nunca são extraordinários [risos]. Não se pode adivinhar o que sucederá, mas apesar disso, nos anos 30, partidos como o nazi eram apoiados não apenas pelas ideias, mas por forças importantes, não só os interesses dos capitalistas que os apoiavam, mas mesmo por forças militares e paramilitares: muitos desses partidos tinham milícias armadas e estavam infiltrados na polícia e no exército. Em comparação, a FN é essencialmente uma força eleitoral. É bastante diferente. Não estamos num contexto, como nos anos 30, em que havia confrontos armados nas ruas entre comunistas e nazis. E depois não há significantes nacionais fortes, como havia para a Alemanha nos anos 30. Há uma relação com os migrantes, a relação com a Europa. É preciso lembrar que os franceses disseram "não" na única vez que os consultaram sobre a Europa [referendo à Constituição Europeia]. Se há uma força que pode corporizar essa recusa com vantagem é, neste momento, a FN. Abordando a especificidade francesa, verifica-se que há a degradação de um sistema, a V República, fundada por um homem carismático [general De Gaulle]. Quando esse homem carismático desapareceu e o sistema se instalou na longa duração, produziu esta espécie de isolamento da elite dirigente, em relação àquilo que eram as formas populares. Se houvesse uma força de esquerda poderosa nesta altura, ela poderia ter esse papel. Em resumo, o PS devorou o Partido Comunista e os esquerdistas, e não resta nada. Resta apenas aquela força que à partida não era muito grande, mas que cresceu à conta do fecho do sistema sobre ele próprio.
Escreveu "As Palavras da História" em 1992, numa reacção a um certo revisionismo histórico, um revisionismo muito ancorado pelo livro de François Furet sobre a Revolução Francesa. Mas o seu livro é também uma afirmação de uma história feita por acontecimentos contra uma ideia de uma história de estruturas e continuidades, que era apanágio da escola dos "Annales". No seu quadro é possível compreender os acontecimentos ou é apenas possível vivê-los?
Eu não tenho uma teoria transcendente dos acontecimentos, como o meu colega Alain Badiou, mas ao mesmo tempo fui forçado a dizer que há história porque há rupturas. Não há história quando se observam apenas as regularidades. A história, num sentido moderno, acontece quando se verificam rupturas que fazem que todo o universo do pensável e do possível seja alterado. Tudo isto acontece, naturalmente, através das acções do indivíduos e dos grupos - uma acção que passa primeiramente pelas palavras, porque apesar de tudo as pessoas quando saem às ruas tomam as armas ou ocupam as fábricas, as universidades e as praças, fazem-no porque foram convocadas pela potência de certas palavras que desenharam uma abertura em relação ao sistema de dominante de gestão das palavras e das imagens. Concluindo, diria que há acontecimentos, e que esses momentos criam mundos possíveis e nós vivemos nesse conflito entre mundos. Naturalmente que há acontecimentos porque há actores e sujeitos que produzem esses acontecimentos.
Foi discípulo de Althusser e rompeu com ele. Althusser fazia uma distinção clara entre ideologia e ciência. Para ele só havia ciência mediante uma ruptura epistemológica que transcendia o conhecimento sensível e atingia aquele conhecimento que era inteligível. É contra a ideia de história como ciência, com a capacidade de perceber e prever o que vai acontecer?
Pretendeu-se muitas vezes pensar a história como ciência e retirar daí uma possibilidade de acção revolucionária. Acho que a história empírica julgou essas pretensões. As revoluções não foram feitas em países que os historiadores achavam estarem maduros para elas, por causa da aplicação das vanguardas cientes das "leis da história". Pode dizer-se que em nenhuma parte houve transformação da vida sobre a base do conhecimento dessas propagadas leis da história. De certa forma é mesmo necessário duvidar que haja leis da história. Apesar de tudo, uma ciência do capital não é em si mesma uma lei da história. Vemos em Marx que ele escreve interminavelmente "O Capital" para não ter de responder à pergunta sobre o que é uma lei da história, e o que é um partido instituído que aplica as leis da história. Penso que o problema que há no chamado materialismo histórico é que ele nos reenvia a um mundo em que existia uma ciência de governar, de assegurar a paz, na velha tradição de Aristóteles, e que precisamente funcionava de uma forma muito limitada. Era um saber muito circunscrito, que pressupunha o conhecimento de um conjunto de parâmetros extremamente limitados. O domínio da história no sentido moderno é o campo de uma infinidade e multiplicidade de relações, que faz com que não haja nenhuma comensurabilidade entre uma ciência, que seria uma espécie de ciência do processo global, e qualquer forma de acção. Uma ciência do processo histórico global não pode nunca fundar uma forma de acção. De certa maneira, as polémicas de Lenine demonstraram isso. Quando os mencheviques e outros que se opunham aos bolcheviques diziam que não era isso que tinha previsto Marx, Lenine fazia e justificava um golpe de força da prática sobre a teoria. A prática pressupõe que possamos reduzir as coisas a um número limitado de parâmetros. O que permite que um golpe de Estado funcione não são os mesmos parâmetros que permitem que uma sociedade funcione. Não penso que actualmente haja uma ciência do processo histórico global que preveja o que quer que seja. Há ciências locais para tentar gerir as formas de governar, mas mesmo isso não funciona. Temos em França uma pequena ciência política, um pouco miserável, que pretende gerir as forças em presença e analisar e prever a evolução das opiniões. E nada disso funciona.
Não podendo a história fundar a acção, pode-se de qualquer forma dizer que há um campo limitado de possibilidades ou tudo é possível?
Não sabemos aquilo que é possível e aquilo que é impossível. As revoluções demonstram-nos isso. Aparecem sempre como uma transformação do campo daquilo que parecia ser possível. Por consequência, o importante é repensar o campo do possível e desligá-lo do previsível. Aliás, porque o que é previsível se faz num determinado contexto, e quando há uma ruptura e um acontecimento esse campo do possível encontra-se totalmente alterado. Aquilo que era impossível passa a existir e aquilo que era previsível não se verifica.
Mas uma das grandes "virtudes" do capitalismo não é a construção deste consenso de que não há possíveis para além do capitalismo, e que não há neste mundo nada que escape ao seu domínio?
Temos um sistema global de dominação e as desigualdades que ele produz determinam as formas de vida, e formas de juntar seres humanos que são diversas. Este sistema global articula-se com múltiplas formas de bricolage. Mesmo que se possa dizer que temos hoje uma espécie de monopólio da imaginação do possível, é preciso ser-se contra a ideia de que o capitalismo invadiu as nossas vidas e cabeças. Reajo e sou completamente contra estas concepções de que o mundo da cultura, do espectáculo, são meros apêndices e prolongamentos do mercado capitalista e do consumo. É por isso que me bato por cindir e separar a ideia democrática do mercado, do espectáculo e do individualismo. O capitalismo é uma espécie de mecanismo de funcionamento global que impõe as suas leis, mas também o faz porque os estados do mundo conspiram com essas leis. Diz-se que há uma imposição do capitalismo aos estados, mas aquilo que a crise europeia mostrou é que os estados usam o capitalismo como justificação para a sua acção contra os povos. Foi isso que o processo da constituição europeia provou: a tentativa da inscrição na constituição dos estados europeus das leis do capital. Mas apesar de tudo existem e acontecem formas de subversão contra a política desses estados. Em segundo lugar, sou contra estas análises um pouco fáceis que dizem que não há mais do que a subjectividade neoliberal, como se todos os indivíduos tivessem ligado corpo e alma e integrado os valores do capitalismo. Apesar de tudo vemos, à direita e à esquerda, formas de luta contra este poder: podem ser os operários têxteis na Ásia, as multidões em Istambul ou os indignados do 15 M em Espanha. O capital e os estados formam uma enorme potência, mas este poder não invadiu totalmente as nossas vidas e consciências de forma a impedir qualquer acto de resistência.
Participou num debate, com Zizek e Badiou e outros pensadores sobre a ideia do comunismo. Acha que o comunismo é uma possibilidade, uma necessidade ou só uma provocação?
Penso que nos dias de hoje é essencialmente uma provocação. É preciso partir da ideia de que o comunismo como realidade não designa grande coisa, à parte dois ou três regimes opressivos. Não representa neste momento nada que possa designar alguma coisa que possa representar qualquer ideal de futuro para qualquer movimento social. À parte isso, o que é o comunismo? É uma história que terminou muito mal. Não só terminou mal, como sucedeu mal.
E portando terminou?
A história aberta pela Revolução de 1917 pode-se dizer que terminou em 1989. Todos os movimentos que se juntaram à volta da potência aberta por essa revolução estão moribundos. O projecto da conferência em que eu participei é reconstruir o comunismo como ideia. O problema deste desafio de Slavoj Zizek e Alain Badiou é que supõe de reinventar a potência de uma ideia, sem se apoiar em nenhuma experiência material existente. Que potência podemos dar hoje à ideia de comunismo? Eu respondo que a potência que podemos dar a essa ideia é a potência da ideia de emancipação, a potência da ideia de um mundo que é fundada sobre a proposição de uma capacidade igual partilhada. Ninguém acredita que vamos dar potência a essa ideia como um retorno ao passado, em que há um processo histórico, que é preciso dominá-lo, que é preciso para isso uma vanguarda, etc.
Não há vanguarda para si, mas na sua filosofia de emancipação quais são os sujeitos desse processo? É possível organizar e lutar por isso?
É possível constituir potências colectivas de emancipação, é mesmo possível constituir um novo Partido Comunista, apesar de Zizek e Badiou não o terem feito nessa conferência. Mas essa ideia de um partido sujeito da história ficou no passado. É apenas possível dizer que há uma potência comum que é invocada neste processo. É possível que a comunidade seja gerida por sujeitos que expressam a afirmação da potência de todos e não de uns poucos governantes e politólogos. Na realidade aquilo que eu proponho, em nome da emancipação, e o que propõem Zizek e Badiou, em nome do comunismo, não é assim tão diferente, tirando algumas provocações de Zizek, dizendo que o estalinismo não foi assim tão mau, mas isso está mais na óptica do espectáculo que do pensamento.

Comentários