Em busca da comunidade perdida
(Fotografia de Sebastião Salgado)
Num tempo em que estamos atomizados e
isolados – em que só “socializamos” pelo consumo; em que,
segundo alguns estudos científicos, somos definidos pelos likes que
colocamos nas redes sociais; em que a imagem que damos são os
reflexos dinâmicos dos condicionamentos que nos impõem; em que
essas investigações sobre nós permitem otimizar aquilo que querem
que sejamos: grandes consumidores –, perdemos essa capacidade de
criar uma comunidade de sentido.
Transformamo-nos em dados, apenas
dados, para que as empresas consigam melhorar as alavancas para fazer
cumprir o mandamento “crescei e consumi”. A partir de milhões de
milhões de dados recolhidos no Facebook, o investigador Michael
Kosinski conseguiu estabelecer relações estatísticas entre
determinados likes e determinadas características. Segundo garantem
os jornalistas de Das Magazin, em 2012, Kosinski provou que com uma
média de 68 likes no Facebook era possível descobrir a cor da pele
de alguém (com 95% de probabilidade), a sua orientação sexual
(88%) e a sua preferência política (85%). Este método também
podia dizer o nível de inteligência e a crença religiosa, assim
como o consumo de álcool, tabaco e droga.
É preciso voltar a relembrar as
palavras de Tyler Durden no “Fight Club”, “You are not how much
money you have in the bank. You are not the car you drive. You are
not the contents of your wallet. You are not your fucking khakis. You
are the all-singing, all-dancing crap of the world.” (Você não é
quanto dinheiro tem no banco. Você não é o carro que conduz. Você
não é o conteúdo da sua carteira. Você não é as calças de
ganga que veste. Você é toda a merda ambulante do mundo).
A comunidade é a forma que encontramos
de sermos mais que um eu finito. É a única forma em que podemos ter
sentido. Não existimos sem ser em relação com os outros. Não
vivemos sem ser em sociedade.
O historiador Mike Davis começa o seu
livro “Cidade de quartzo”, em que se conta a história de Los
Angeles, com o aparecimento, apogeu e queda de uma comunidade utópica
socialista no deserto do Mojave que durou meia dúzia de anos.
Fundada em Llano, em 1914, esta comunidade pretendia provar “ao
mundo inteiro qualquer coisa que não se conhecia. A saber, que era
possível viver sem fazer a guerra, sem propriedade privada, nem
lucros”, relembra um dos seus fundadores. Em 1916, centenas de
assalariados agrícolas sem terra e operários fugidos de outras
zonas do EUA, criaram uma comunidade em que, com a suas modernas
formas de agricultura com irrigação, formas de produção leitira
moderna, com um pequeno estúdio de cinema, pequenas oficinas,
creches, escolas, orquestra de ragtime, a maior biblioteca em
centenas de quilómetros em redor, conseguiam produzir mais de 90% do
que consumiam e até inventar um avião para tentar voar. E sobretudo
viver com outro sentido. Esta comunidade tem vida efémera. É-lhes
retirado o direito ao acesso à água. O crescimento do capitalismo
em Los Angeles e o crescimento da cidade ditam a sua morte. Não há
espaço no capitalismo para ilhas e utopias, esse modo de produção
engole tudo na procura incessante de novos mercados.
A estas formas de comunidades utópicas
de sentido, que viviam dos espaços livres que o capitalismo não
tinha engolido, sucederam-se, melhor dizendo, consolidaram-se formas
de contracultura e de criação de alternativas alicerçadas nas
relações de produção. As culturas e identidades operárias foram
a forja de grande parte das alternativas políticas que se desenharam
desde os finais do século XIX até ao final do século XX, na Europa
e nos Estados Unidos.
Uma das histórias fruto dessa
identidade que não me canso de escrever passou–se em Portugal, em
plena ditadura. A 30 de janeiro de 1938 defrontaram-se no então
Estádio Nacional as seleções de Espanha e Portugal. Durante os
hinos, os dignitários fascistas na tribuna, a multidão e os
jogadores fizeram a saudação nazi. Todos? Não, quatro jogadores
portugueses recusaram fazer o gesto. Artur Quaresma deixou os braços
em baixo. Mariano Rodrigues Amaro e José Ribeiro Simões levantaram,
desafiantes, o punho esquerdo, e o goleiro, João Mendonça e
Azevedo, juntou-se à contestação. No final do jogo foram detidos
pela polícia política de Salazar. Artur Quaresma explicou em 2004
ao jornal “Record” porque se recusou a fazer a saudação
fascista: “Tinha muitos amigos comunistas e oposicionistas, por
isso foi uma atitude natural, embora não pensada previamente.”
Apesar de terem sido presos pela PIDE, foram libertados em pouco
tempo, dado o apelo da direção do clube. Numa conversa, Quaresma
acrescentou outra razão de fundo para a coragem dos quatro
destemidos jogadores contra tudo e contra todos. Era o facto de todos
eles eram do Barreiro. Apanhar da polícia era tenebroso, mas viver
na vila operária com o ónus de ter feito a saudação fascista e
ter dobrado a coluna era muito pior.
O ascenso dos nacionalismos
identitários racistas na Europa, sem aparente contraponto popular em
muitos países, deve-se em grande parte ao fim das indústrias que
eram a base material da sustentação desse mundo operário. Há num
plano do filme português “A Fábrica do Nada”, premiado em
Cannes, um momento revelação quando se mostram as dezenas de
fábricas que existiam na zona de Vila Franca de Xira, que se
transformaram em armazéns abandonados.
No seu livro “Le Front National,
entre extrémisme, populisme et démocratie”, Michel Wieviorka
exemplifica este processo económico com consequências sociais e
políticas: o desemprego fez a sua aparição e os “subúrbios
vermelhos”, dirigidos pelos comunistas, que tinham tido um papel
fundamental do ponto de vista associativo e político destas
populações, perdem força. É neste deserto do fim das fábricas,
do fim das coletividades operárias, que começa a morrer um mundo e,
pelo medo, vai-se instalando a extrema-direita.
Se o trabalho se extingue e torna raro,
é preciso formar comunidades que tenham como ponto de partida a
igualdade no acesso ao poder e ao rendimento, e até a reivindicação
de dividir por todos o trabalho restante. Só conseguindo poder para
todos será possível que o fim do trabalho como o conhecemos não
seja a divisão total e espacial entre os muito ricos e os 99%
restantes, confinados a zonas cada vez mais selvagens nas nossas
sociedades. Para inverter este processo de destruição social e
ambiental é preciso constituir comunidades de ação que não se
fundamentem apenas na situação social que têm, mas sobretudo
naquilo que pretendem que o mundo seja.
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