Em busca da comunidade perdida




(Fotografia de Sebastião Salgado)

Há um belíssimo texto de Luiz Pacheco que se chama “A comunidade”, em que se descreve de um tipo muito particular de laços: uma família que sobrevive à miséria. É numa espécie de jangada em a cama de família permite ganhar força para as tempestades. O texto é mágico e começa assim: “Estendo o pé e toco com o calcanhar numa bochecha de carne macia e morna; viro-me para o lado esquerdo, de costas para a luz do candeeiro; e bafeja-me um hálito calmo e suave; faço um gesto ao acaso no escuro e a mão, involuntária tenaz de dedos, pulso, sangue latejante, descai-me sobre um seio morno nu ou numa cabecinha de bebé, com um tufo de penugem preta no cocuruto da careca, a moleirinha latejante; respiramos na boca uns dos outros, trocamos pernas e braços, bafos suor uns com os outros, uns pelos outros, tão aconchegados, tão embrulhados e enleados num mesmo calor como se as nossas veias e artérias transportassem o mesmo sangue girando, palpitassem compassadamente, silenciosamente, duma igual vivificante seiva.”
Num tempo em que estamos atomizados e isolados – em que só “socializamos” pelo consumo; em que, segundo alguns estudos científicos, somos definidos pelos likes que colocamos nas redes sociais; em que a imagem que damos são os reflexos dinâmicos dos condicionamentos que nos impõem; em que essas investigações sobre nós permitem otimizar aquilo que querem que sejamos: grandes consumidores –, perdemos essa capacidade de criar uma comunidade de sentido.
Transformamo-nos em dados, apenas dados, para que as empresas consigam melhorar as alavancas para fazer cumprir o mandamento “crescei e consumi”. A partir de milhões de milhões de dados recolhidos no Facebook, o investigador Michael Kosinski conseguiu estabelecer relações estatísticas entre determinados likes e determinadas características. Segundo garantem os jornalistas de Das Magazin, em 2012, Kosinski provou que com uma média de 68 likes no Facebook era possível descobrir a cor da pele de alguém (com 95% de probabilidade), a sua orientação sexual (88%) e a sua preferência política (85%). Este método também podia dizer o nível de inteligência e a crença religiosa, assim como o consumo de álcool, tabaco e droga.
É preciso voltar a relembrar as palavras de Tyler Durden no “Fight Club”, “You are not how much money you have in the bank. You are not the car you drive. You are not the contents of your wallet. You are not your fucking khakis. You are the all-singing, all-dancing crap of the world.” (Você não é quanto dinheiro tem no banco. Você não é o carro que conduz. Você não é o conteúdo da sua carteira. Você não é as calças de ganga que veste. Você é toda a merda ambulante do mundo).
A comunidade é a forma que encontramos de sermos mais que um eu finito. É a única forma em que podemos ter sentido. Não existimos sem ser em relação com os outros. Não vivemos sem ser em sociedade.
O historiador Mike Davis começa o seu livro “Cidade de quartzo”, em que se conta a história de Los Angeles, com o aparecimento, apogeu e queda de uma comunidade utópica socialista no deserto do Mojave que durou meia dúzia de anos. Fundada em Llano, em 1914, esta comunidade pretendia provar “ao mundo inteiro qualquer coisa que não se conhecia. A saber, que era possível viver sem fazer a guerra, sem propriedade privada, nem lucros”, relembra um dos seus fundadores. Em 1916, centenas de assalariados agrícolas sem terra e operários fugidos de outras zonas do EUA, criaram uma comunidade em que, com a suas modernas formas de agricultura com irrigação, formas de produção leitira moderna, com um pequeno estúdio de cinema, pequenas oficinas, creches, escolas, orquestra de ragtime, a maior biblioteca em centenas de quilómetros em redor, conseguiam produzir mais de 90% do que consumiam e até inventar um avião para tentar voar. E sobretudo viver com outro sentido. Esta comunidade tem vida efémera. É-lhes retirado o direito ao acesso à água. O crescimento do capitalismo em Los Angeles e o crescimento da cidade ditam a sua morte. Não há espaço no capitalismo para ilhas e utopias, esse modo de produção engole tudo na procura incessante de novos mercados.
A estas formas de comunidades utópicas de sentido, que viviam dos espaços livres que o capitalismo não tinha engolido, sucederam-se, melhor dizendo, consolidaram-se formas de contracultura e de criação de alternativas alicerçadas nas relações de produção. As culturas e identidades operárias foram a forja de grande parte das alternativas políticas que se desenharam desde os finais do século XIX até ao final do século XX, na Europa e nos Estados Unidos.
Uma das histórias fruto dessa identidade que não me canso de escrever passou–se em Portugal, em plena ditadura. A 30 de janeiro de 1938 defrontaram-se no então Estádio Nacional as seleções de Espanha e Portugal. Durante os hinos, os dignitários fascistas na tribuna, a multidão e os jogadores fizeram a saudação nazi. Todos? Não, quatro jogadores portugueses recusaram fazer o gesto. Artur Quaresma deixou os braços em baixo. Mariano Rodrigues Amaro e José Ribeiro Simões levantaram, desafiantes, o punho esquerdo, e o goleiro, João Mendonça e Azevedo, juntou-se à contestação. No final do jogo foram detidos pela polícia política de Salazar. Artur Quaresma explicou em 2004 ao jornal “Record” porque se recusou a fazer a saudação fascista: “Tinha muitos amigos comunistas e oposicionistas, por isso foi uma atitude natural, embora não pensada previamente.” Apesar de terem sido presos pela PIDE, foram libertados em pouco tempo, dado o apelo da direção do clube. Numa conversa, Quaresma acrescentou outra razão de fundo para a coragem dos quatro destemidos jogadores contra tudo e contra todos. Era o facto de todos eles eram do Barreiro. Apanhar da polícia era tenebroso, mas viver na vila operária com o ónus de ter feito a saudação fascista e ter dobrado a coluna era muito pior.
O ascenso dos nacionalismos identitários racistas na Europa, sem aparente contraponto popular em muitos países, deve-se em grande parte ao fim das indústrias que eram a base material da sustentação desse mundo operário. Há num plano do filme português “A Fábrica do Nada”, premiado em Cannes, um momento revelação quando se mostram as dezenas de fábricas que existiam na zona de Vila Franca de Xira, que se transformaram em armazéns abandonados.
No seu livro “Le Front National, entre extrémisme, populisme et démocratie”, Michel Wieviorka exemplifica este processo económico com consequências sociais e políticas: o desemprego fez a sua aparição e os “subúrbios vermelhos”, dirigidos pelos comunistas, que tinham tido um papel fundamental do ponto de vista associativo e político destas populações, perdem força. É neste deserto do fim das fábricas, do fim das coletividades operárias, que começa a morrer um mundo e, pelo medo, vai-se instalando a extrema-direita.
Se o trabalho se extingue e torna raro, é preciso formar comunidades que tenham como ponto de partida a igualdade no acesso ao poder e ao rendimento, e até a reivindicação de dividir por todos o trabalho restante. Só conseguindo poder para todos será possível que o fim do trabalho como o conhecemos não seja a divisão total e espacial entre os muito ricos e os 99% restantes, confinados a zonas cada vez mais selvagens nas nossas sociedades. Para inverter este processo de destruição social e ambiental é preciso constituir comunidades de ação que não se fundamentem apenas na situação social que têm, mas sobretudo naquilo que pretendem que o mundo seja.

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