Assim foi temperado o aço


(A grande fotografia é do meu amigo José Carlos Pratas)

A última vez que falei com Álvaro Cunhal foi para lhe pedir uma entrevista de vida que faria parte de um documentário biográfico que estava a fazer com o jornalista Joaquim Vieira. A conversa decorreu na sede central do Partido Comunista Português, na Soeiro Pereira Gomes. Por razões familiares e políticas, Cunhal não me é indiferente. Os meus pais foram funcionários do PCP antes do 25 de Abril e o líder comunista quando ia a Argel às reuniões da Frente Patriótica de Libertação Nacional ficava na casa do partido, em que nós vivíamos, visto o meu pai ser representante do PCP na FPLN.
Tive a sorte de o entrevistar duas vezes e de ter reunido três vezes com ele no âmbito político. Nesse último dia que o vi já estava fisicamente debilitado. Via mal, parecia movimentar-se nos corredores da Soeiro recorrendo à memória. Falámos numa pequena sala do primeiro piso, decorada com gravuras de pintores neorrealistas portugueses.
Apesar da proximidade política, Cunhal recusou participar em qualquer intento biográfico. Sorriu, olhou para mim daquela forma próxima que desarmava qualquer interlocutor, como quem dava a alguém toda a atenção do mundo, e disse-me: "Não me ias querer como entrevistado. Isso faria do teu trabalho uma biografia oficial. Num trabalho desse género ias adoptar os meus pontos de vista. Ora naturalmente convirá que sejas livre para fazer o documentário, com o qual eu posso não concordar." E concluiu: "Nunca estive interessado em fazer a minha autobiografia, gasto o tempo que me resta a trabalhar no presente." A conversa derivou para a importância para a história de não se perder o testemunho dos protagonistas e da necessidade de haver um contributo dos próprios para a história do PCP. Uma espécie de voz que não tivesse a pretensão de ser tudo, mas que não abdicasse de dar a sua versão do sucedido.
Álvaro Cunhal mostrou-se disponível, para ao longo do documentário eu falar com ele informalmente, mas isso acabou por não se verificar. No final do encontro ainda falámos sobre a história: "Os jornalistas tendem a pensar que basta dar duas versões de qualquer assunto para obterem uma verdade jornalística daquilo que se passou. Ora a história não é isso, ela não aconteceu de duas maneiras diferentes. As coisas acontecem apenas de uma maneira. Sobre a minha vida podem existir várias versões, mas eu tenho uma vantagem sobre essas pessoas que escrevem sobre ela. Eu estive lá, vivi e sei como aconteceu", disse.
O livro "Álvaro Cunhal, Fotobiografia", da autoria da Comissão das Comemorações de Álvaro Cunhal e levado ao prelo pelas Edições Avante! é uma obra oficial. Representa a versão do PCP daquilo que se passou. É natural, portanto, que para os comunistas o que é notícia na chegada de Álvaro Cunhal ao aeroporto da Portela depois da Revolução de Abril seja o próprio Álvaro Cunhal, e não o facto de Mário Soares ter lá ido, como muitas centenas de pessoas. Essa prioridade não apaga Soares da história. Há dezenas de livros sobre Cunhal escritos por pessoas que acham que Soares é muito mais importante na história de Portugal que o histórico comunista. Até há livros que divulgam interpretações fantasiosas dessa chegada do líder comunista ao aeroporto, em que garantem que o PCP teria recriado o cenário da chegada de Lenine a Petrogrado, subindo Cunhal para cima da chaimite, a convite, pasme-se, do major Jaime Neves, que se veio a distinguir no 25 de Novembro, embora se tivesse baldado no 25 de Abril.
Estamos perante uma obra interessante, pela quantidade de imagens que tem e pela qualidade dos materiais que recolhe. É uma história oficial, mas é um erro falarmos de estalinismo. A menos que tenhamos como objectivo branquear as perversões do ditador de origem georgiana. E há fotobiografias de Cunhal para todos os gostos: a da antiga maoista reconvertida à direita Helena Matos ("Álvaro Cunhal no País dos Sovietes", com a co-autoria do jornalista José Milhazes), como poderemos ler brevemente, a versão autorizada do jornalista Joaquim Vieira. Não estamos perante nenhum discurso único e totalitário. Os portugueses têm acesso a uma pluralidade de versões de uma mesma história e poderão ajuizar como de facto se passou. Caso a que não é estranho estar-se a assinalar o centenário do nascimento de Álvaro Cunhal.
Temos muito mais sorte que nos dias normais em que somos presas de uma história dos vencedores. Quando morrem gigantes da nossa vida recente, como Sérgio Vilarigues, que dirigiu durante dezenas de anos, em condições muito difíceis de clandestinidade, a resistência à ditadura, temos direito a pequenas notícias de pé de página. O que contrasta com a generosidade com que a comunicação social tratará qualquer óbito de um comentador ou economista do regime com menos de metro e meio de relevância histórica.
A história aconteceu de uma só maneira, mas a sua memória e a sua verdade disputam-se no presente. Uma história falseada condiciona-nos mais do que aquilo que de facto terá acontecido. A falsidade impõe-se às pessoas que vivem hoje, a verdade morre no tempo.
O trabalho do PCP sobre a sua história tropeça às vezes em critérios políticos que enfraquecem o conjunto da mensagem. Os casos não são de agora, mas a prática mantém-se com poucas alterações. Na enorme exposição que o PCP fez para assinalar os seus 60 anos de história no Pavilhão dos Desportos, em 1981, os painéis sobre a fuga dos dirigentes do PCP da cadeia de Peniche omitiam a participação na fuga do seu antigo dirigente que rompeu com o PCP durante o conflito sino-soviético, Francisco Martins Rodrigues. Da mesma maneira que um painel com as fotografias das dezenas activistas julgados pelo fascismo no processo do MUD juvenil não chegou a ser afixado porque entre eles estava um dirigente que colaborou, posteriormente, com a PIDE, Augusto Lindolfo.
Sobre a fotobiografia de Cunhal, muito foi comentado no sentido criticar a escolha dos seus autores. Diz-se que alguns dirigentes do PCP, que entretanto saíram do partido, não estão devidamente representados e outros o estarão de mais. Agora penso que a árvore não deve esconder a floresta. Não é pelo facto de o livro não escrever que a direcção do PCP não queria que o seu dirigente Militão Ribeiro fizesse uma greve de fome que o seu sacrifício é menos heróico e que naturalmente ele tenha a homenagem do partido pelo qual lutou até à morte.
Junto às fotografias dos milhares de pessoas que ocorreram ao funeral de Álvaro Cunhal, são publicadas as últimas vontades do homem: pediu que não fossem proferidos discursos e que fosse acompanhado pelos seus camaradas, amigos e familiares. E terminava convidando "outros que queiram estar presentes, com respeito pelo comunista que fui toda a vida, com virtudes e defeitos, méritos e deméritos como todo o ser humano".
Esta obra poderá ser lida com interesse por todos aqueles que foram convidados pelo próprio para uma derradeira homenagem.
Os organizadores optaram por dividir a obra em capítulos temporais: infância e adolescência, juventude, primeiro anos de militância e reorganização do PCP, a prisão e a fuga, o trabalho no exterior e a elaboração da orientação expressa no "Rumo à Vitória", o tempo da revolução, o período pós-revolucionário, em que Cunhal é secretário- -geral do PCP, a sua vida e militância nos anos finais. A esses somam-se dois capítulos: um abarcando as reflexões e as actividades artísticas de Álvaro Cunhal e outro à laia de conclusão.
Nestas páginas pode ler-se as notas do biografado na polémica que teve, sob o pseudónimo de António Vale, acerca de arte e conteúdo com homens de valor como Mário Dionísio. Cunhal defendia que a forma era a organização do conteúdo e que a arte e a vida partilhavam as mesmas preocupações e anseios. Isso não se confundia com a posição política do artista. Cunhal tinha uma profunda admiração pelos filmes do realizador crítico do regime soviético Tarkovsky.
Naturalmente que um livro sobre alguém que dedicou a vida à luta política se confunde em muito com o partido que forjou. Mas aqui também está algo de pessoal comum aos seres humanos: meninice, juventude, família, amores, filha e netos. Tudo isso imerso numa vida em que a política se respirava.
Os discursos de Cunhal não se rendiam aos dogmas da comunicação espectáculo. Os seus detractores falavam de uma cassete por repetir exaustivamente palavras e caracterizações. Se achava que vivíamos no capitalismo, chamava-lhe "capitalismo", não recorria a palavras que podiam ser mais simpáticas ou estar no escaparate da moda. Mas exercia quando encarava alguém o fascínio da sua inteligência. Assisti a uma intervenção dele na "sua" Faculdade de Direito de Lisboa. O anfiteatro estava sobrelotado de estudantes, maioritariamente hostis às suas ideias. Um deles perguntou-lhe como se sentia por ter dedicado toda a vida a uma ideia que tinha falhado. Cunhal respondeu-lhe com uma história da mitologia grega: um homem a quem os deuses tinham castigado e destruído parte da sua vida atira uma seta aos céus, num grito de protesto. A seta sobe, sobe e quando cai dos céus vem manchada de sangue. Esse homem tinha atingido os deus culpados do seu sofrimento. Álvaro Cunhal concluía: mesmo na situação mais desesperada vale sempre a pena lutar. Este livro conta isso.

Comentários