A História tem de se apaixonar
(Henri Cartier-Bresson. SOVIET UNION. Moscow. 1954. Canteen for workers building the Hotel Metropol.)
Estamos presos num presente que se
repete continuamente, fazendo-o através de uma cascata de
acontecimentos que se dizem diferentes. Estes sucedem-se e
atropelam-se em ritmo de hipertexto. Em cada final do dia não nos
lembramos daquilo que queríamos ter feito no seu início. Tudo muda
muito rápido para que tudo se mantenha exactamente na mesma. As
nossas vidas tornaram-se atomizadas, os nosso laços líquidos.
Transformaram-nos em indivíduos isolados, em corpos privados de
comunidade e sentido. Aguentamos a injustiça nas nossas existências
anestesiados com o barulho das luzes.
“Perdida la esperanza
Perdida la ilusión
Los problemas continúan
Sin hallarse solución
Nuestras vidas se consumen
El cerebro se destruye
Nuestros cuerpos caen rendidos
Como una maldición
El pasado ha pasado
Y por él nada hay que hacer
El presente es un fracaso
Y el futuro no se ve”,
cantavam Iosu Expósito e Juanma
Suárez, da banda basca punk Eskorbuto, que morreram demasiado cedo
afogados no seu próprio desespero.
Num dos filmes mais conhecidos do
realizador francês Alain Resnais, “O Meu Tio da América”, a
ficção e a história é interrompida com experiências de ratinhos
brancos no meio de vidas de cobaia. Um rato encerrado num espaço
fechado vai recebendo choques eléctricos, através do chão, e morre
rapidamente. Perto, dois ratos fechados num espaço equivalente, cada
vez que recebem um choque, andam à pancada um com o outro e
sobrevivem. A azáfama permite-nos sobreviver ao vazio, à falta de
sentido e até, parece, aos choques elétricos.
Para fugirmos a este tipo de dinâmica
e vivência, ilustradas por Resnais, a partir das teses do biólogo
Henri Laborit sobre o comportamento humano, necessitamos de rasgar
esse fio da história. Presos no presente, necessitamos de resgatar
outros cursos tornados impossíveis e a memória das gerações que
viveram e lutaram para conseguirmos sair desta greve dos
acontecimentos. É preciso resgatar um passado comunitário rumo a um
futuro utópico. Só reencantando o mundo é possível transformar e
mudar a vida, como defendiam Marx e Rimbaud.
O maior impedimento à criação de uma
alternativa ao que temos, não é as pessoas não terem consciência
do mundo estar mal. Todos a têm. É a inexistência da crença que é
possível romper com a trama dos acontecimentos. Mudar o mundo ficou
fora dos limites do pensável.
A política está em crise porque o
pensável não serve há muito. Mas desta crise só tem nascido a
manutenção mais violenta do que temos, por inexistência de uma
ideia e de um sujeito que incorpore uma narrativa de mudança. Por
todo o lado, as coisas vão rompendo. Muitas vezes pela simples
agressão aos mais fracos, feita por quem torna migrantes bodes
expiatórios e defende muros e fronteiras como panaceia securitária.
Outras vezes, o que temos continua a impor-se pela invenção de
novas caras, como o novo presidente francês, Emmanuel Macron. Essas
novas marcas brancas são uma espécie de continuação das mesmas
políticas com outras embalagens.
A História tem de voltar a ganhar a
paixão do real. No processo amoroso, um encontro fortuito abre a
possibilidade de criar um mundo, através da capacidade de ver a
partir da diferença a dois. Segundo Badiou, ele não nos leva para
“cima” nem para “baixo”, permite-nos construir um mundo de
uma forma descentrada da visão que ultrapassa o nosso simples
interesse individual. Modifica o tempo e “inventa uma forma
diferente de durar na vida”. É um duro desejo de durar, mas é
sobretudo a assunção de um desejo de uma duração desconhecida.
Numa ruptura revolucionária é
possível destruir muros e cadeias a partir de um gesto coletivo
partilhado por muitos. Tudo começa num encontro e num gesto e na
apropriação de palavras que resumem vontades e as tornam ato.
Num ano de muitas efemérides [o texto
foi escrito em 2017], faz 100 anos que depois de derrotados na Comuna
de Paris, os vencidos da História tomaram o Palácio de Inverno.
Quando os apoiantes do governo de
Kerensky garantiram que não havia nenhum partido na Rússia com
capacidade de tomar o poder e fazer diferente, Lenine tomou a palavra
e garantiu que havia: os bolcheviques queriam tomar o poder. Até
este momento, apenas havia vagas possibilidades inscritas na
História. A Rússia estava numa profunda crise e farta da guerra. O
povo queria paz, os camponeses queriam terra e os operários queriam
pão. Mas as condições sociais existentes não determinam, por si
só, o que poderia acontecer num determinado momento. Elas apenas
fornecem parte das condições em que se desenrola a luta política.
Sobre isso é preciso criar um sentido, impor uma ideia hegemónica,
unir sujeitos que possam fazer a mudança.
“As armas da crítica não podem, de
facto, substituir a crítica das armas; a força material tem de ser
deposta por força material, mas a teoria também se converte em
força material uma vez que se apossa dos homens. A teoria é capaz
de prender os homens desde que demonstre a sua verdade face ao homem,
desde que se torne radical. Ser radical é atacar o problema nas suas
raízes”, escreveu Karl Marx “Na Crítica à Filosofia do Direito
de Hegel”, concluindo que o proletariado é “uma classe da
sociedade burguesa que não é uma classe da sociedade burguesa; de
um estado que é a dissolução de todos os estados; de uma esfera
que possui um caráter universal pelos seus sofrimentos universais e
que não reclama nenhum direito especial para si, porque não se
comete contra ela nenhuma violência especial, senão a violência
pura e simples; que já não pode apelar a um título histórico, mas
simplesmente ao título humano; que não se encontra em nenhuma
espécie de contraposição particular, senão numa contraposição
universal com as premissas do Estado; de uma esfera, finalmente, que
não pode emancipar-se sem se emancipar de todas as demais esferas da
sociedade e, simultaneamente, de emancipar todas elas; que é, numa
palavra, a perda total do homem e que, por conseguinte, só pode
atingir o seu objetivo mediante a recuperação total do homem. Esta
dissolução da sociedade como uma classe especial é o
proletariado”.
Mas para o proletariado, seja ele qual
for hoje, para cumprir essa missão não basta respirar, é
necessário saber que existe e querer traçar esse caminho. Uma pedra
cumpre a lei da gravidade sem pensar, as pessoas estão na História
movidas pelos suas próprias ideias e convicções. Para haver um
acontecimento que rompa com a ordem existente e crie um sujeito
histórico é preciso existir alguém fiel a esse acontecimento que,
numa determinada situação, se torna sujeito de uma rutura. São os
acontecimentos que criam as suas próprias condições de existência.
Antes deles existirem eles não estavam inscritos na situação. Uma
situação abre para um conjunto diversificado de possibilidades. Um
revolução refaz o passado, muda o presente e traça um futuro. É
como uma paixão: cria as suas próprias condições de existência.
A partir de um encontro fortuito, faz-se um gesto que transcende uma
situação e cria uma nova realidade. Quando alguém se apaixona e
fala com a pessoa que ama e estabelece uma genealogia do que o fez
gostar, transforma tudo o que parecia casual num caminho com sentido.
A revolução é esse momento de rutura que cria um novo sentido.
Aquilo que a inaugura é um gesto. E foi isso que Lenine fez. Assumiu
que era possível vencer onde outros não viam senão derrota.
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