A cama como ideologia do consumo em outros lençóis: amor sem risco e política sem revolução
(Gerda Taro fotografada por Robert Capa)
Numa célebre passagem da sua obra,
Jorge Luis Borges põe um narrador a conversar com um velho chinês.
O idoso explica-lhe que uma infinidade de possibilidades coexistem
num mesmo tempo, mas em mundos paralelos – como na parábola do
gato de Schrödinger, fundadora da moderna física quântica, em que
no momento em que abrimos uma caixa, com veneno e um gato, o felino
está ao mesmo tempo morto e vivo. Diz o chinês da história de
Borges: “Não existimos na maioria desses tempos; em alguns existe
você e não eu; noutros eu e você não; noutros os dois. Neste que
a sorte me permite, você chegou a minha casa; noutro, você está
atravessar o meu jardim e encontra-me morto.”
Perdemos um autocarro por 30 segundos e
encontramos alguém que de outra maneira teríamos falhado. O amor é
um verdadeiro acaso. Escrevia Niklas Luhmann, “o amor não é
apenas uma anomalia, mas antes uma improbabilidade absolutamente
normal”. No processo amoroso, um encontro fortuito abre a
possibilidade de criar um mundo, através da capacidade de ver a
partir da diferença a dois. Segundo Badiou, ele não nos leva para
“cima” nem para “baixo”, permite-nos construir um mundo de
uma forma descentrada da visão, que ultrapassa o nosso simples
interesse individual. Modifica o tempo e “inventa uma forma
diferente de durar na vida”. É um duro desejo de durar, mas é
sobretudo a assunção de um desejo de uma duração desconhecida.
A esta ideia de um amor que constrói a
partir de um encontro fortuito uma verdade que dura no tempo, opõe-se
a concepção de que o amor não passa de uma capa ideológica para a
reprodução, em que a paixão não seria mais que a sua prisão.
“O amor é também um prazer”,
assim começa Roger Vailland o seu “Esboço para um retrato de um
verdadeiro libertino”. Nesta pequena obra, o escritor francês
defende que o amor-prazer se opõe tão rigorosamente ao amor-paixão
como a liberdade à escravatura. No amor-paixão os amantes aceitam
passivamente “o curso inexorável” de um destino que não
elegeram. Pelo contrário, o libertino escolhe o objeto do seu
prazer.
O libertino não pretende apaixonar-se
nem perder-se. Vê na paixão uma alienação que não lhe permite
ser livre e controlar a sua vida. A sua verdadeira forma de
comportamento está inscrita na frase do Divino Marquês num romance:
“Ele pousou em mim o olhar frio do verdadeiro libertino.”
Nada é mais estranho ao espírito da
libertinagem que a linguagem das afinidades eletivas de Goethe. A
ideia da predestinação das almas gêmeas é totalmente repugnante
para aquele que apenas a liberdade segue. A geometria variável da
cama seria parte desse processo de libertação perante uma moral
burguesa. Para Vailland, “a cama é para o amor-prazer o que o
dinheiro é para o jogo. Foi precisa uma certa burguesia para
imaginar o jogo a feijões e o amor sem ir para a cama”.
“Libertino” designava originalmente
o filósofo ateu. A palavra foi passando a designar, pela lei da
vida, aquele que escorraça Deus e a moral dos outros da sua cama.
Resta saber se a alteração da moral dominante não torna o
libertino vizinho do liberal. E a cama sem paixão uma espécie de
continuação da ideologia do consumo noutros lençóis.
Esta escolha de relações “livres”
encaixa bem numa sociedade que pretende os outros à distância em
que o maior desejo é a segurança. Vivemos uma época divertida, em
que nos apresentam como conquistas civilizacionais o café sem
cafeína, o amor sem riscos e a política sem revolução. Uma
campanha de um site de encontros francês proclamava com orgulho: “É
possível ter paixão sem cair apaixonado.” E acrescentava:
“Pode-se perfeitamente estar apaixonado sem sofrer.” Para
resolver este embate, o site de encontros propunha uma espécie de
“coaching do amor”, para menorizar este choque traumático que é
um encontro com o outro.
À cruzada pela segurança das almas
juntam-se os liberais; não há nada mais parecido com a doutrina do
mercado capitalista que esta ideia das relações afetivas e sexuais
como uma questão de gozo ligada a expectativas de consumo.
“Longe de ameaçar o presente regime
de biopoder – para utilizar o conceito de Foucault –, a
proliferação recente de várias práticas sexuais e identidades
sexuais é a forma precisa que assume a sexualidade engendrada nas
condições presentes do capitalismo mundial, que encoraja claramente
uma subjectividade caracterizada por identificações múltiplas em
permanente mudança”, defende Zizek.
Nada garante mais a manutenção de um
poder despótico que perpetua a desigualdade que a proliferação de
um conjunto de relações fluidas de trabalho, sociais e amorosas que
nos tornem a todos elementos isolados num espaço em que não temos
poder.
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