Na escuridão dos monstros
No ano 73 antes do nascimento de
Cristo, e 106 anos antes da sua crucificação, o gladiador Espártaco
liderou uma revolta de escravos que fez tremer Roma. Quase um terço
da população da atual bota italiana era constituída por escravos.
A insurreição aguentou dois anos e foi afogada num banho de sangue
pelas tropas dirigidas pelo cônsul romano Marco Licínio Crasso.
Foram crucificados seis mil escravos para servirem de exemplo de que
qualquer veleidade de liberdade seria esmagada com sangue.
No seu livro “Global Inequality: A
New Approach for the Age of Globalization”, tal como na sua obra
“Ter ou Não Ter”, o economista norte-americano de origem sérvia
Branko Milanovic faz uma espécie de análise da riqueza de Crasso
comparando-a com os plutocratas de hoje, para que se perceba a sua
força e a origem do seu poder. Ao contrário do que defendia Adam
Smith, a capacidade que o cônsul teve de esmagar a insurreição de
Espártaco não se devia sobretudo à sua grande habilidade na guerra
e na política, mas ao fato de ser riquíssimo e de essa riqueza,
como notou Max Weber, permitir-lhe colocar a política romana a seu
soldo. Crasso tinha comprado o domínio da política e recebia, em
troca do seu apoio a Júlio César, concessões, negócios e
monopólios. Quanto mais dinheiro ganhava, mais desigual se tornava a
sociedade romana, mais razões de revolta existiam entre os escravos
e os mais pobres, mas maior capacidade de repressão concentrava em
si. Crasso pagou com o seu dinheiro os mercenários para derrotar
Espártaco. Quadruplicou, com eles, as tropas que Roma lhe tinha
entregado para reprimir a revolta.
Segundo Branko Milanovic, estima-se que
a riqueza de Crasso lhe rendesse 12 milhões de sestércios por ano,
o equivalente a um milhar de milhões de dólares. Um romano médio
necessitaria de trabalhar 32 mil anos seguidos e sem descanso para
conseguir obter o rendimento anual de Crasso.
As desigualdades na altura, expressas
na imensa riqueza do cônsul, político e general romano equivalem às
das nossa época. Nos EUA, apenas quatro homens têm uma riqueza
comparável à de Crasso: Bill Gates está à frente, com um
rendimento duas vezes e meia maior que o seu antecessor de Roma.
O que os trabalhos de Branko Milanovic
mostram é que, no mundo, o lugar mais desigual é todo o planeta. O
processo de globalização tornou a desigualdade maior a nível
global do que ela é em qualquer país. Entre 1988 e 2008, os 10%
mais ricos da população mundial apropriaram-se de mais de 60% de
todo o crescimento do rendimento mundial.
Os grandes vencedores deste processo de
globalização não são uma mirífica “classe média global” ou
uma fantasmática “classe criativa”, mas os 1% dos mais ricos do
planeta, que controlavam 46% de toda a riqueza mundial em 2010.
Não há democracia possível numa
economia em que haja tal desigualdade de poder. Tal como Crasso
comprou tropas para esmagar a revolta dos escravos, a plutocracia
global tem o poder de comprar mentes, gerar consensos e amplificar a
sua ideologia nos seus meios de comunicação social, para garantir
que “um homem, um voto” passe a “quem tem mais ações, ganha”.
A atual “global governance” não
fez parte dos mecanismos para tentar minorar as desigualdades, mas
foi parte do instrumento da guerra de classes para as tornar
exponenciais. Como defende Wolfgang Streeck, “a tão promissora
sociedade de serviços e conhecimentos revelou ser muito menor que a
decadente sociedade industrializada”. Apenas aumentou a miséria e
o número de excluídos. “A 'global governance' em nada ajudou,
como também não ajudou a suspensão da soberania nacional”,
garante o sociólogo alemão. Este processo de globalização
económica transformou, aos olhos da ideologia dominante, a luta de
classes em luta e divisão “cultural” nas sociedades
democrático-capitalistas. Nelas reside um mal-estar crescente em
relação à globalização, com o aumento do número de “derrotados
da globalização”. Este processo atingiu o seu ponto de ruptura a
partir da crise de 2008, quando o número de pessoas afetadas tornou
esta fractura social mais visível. “Que este processo tenha
demorado tanto tempo a realizar-se também se prende com o facto de
aqueles que outrora falavam pelos prejudicados terem entrado, no
final dos anos 90, para o clube de fãs da globalização. Quem
sentiu a ‘globalização’ como um problema, e não como uma
solução, viu-se antes de mais sem representantes”, observa o
sociólogo. Verificou-se uma fusão ideológica dos neoliberais com a
dita esquerda cosmopolita. O poeta francês Baudelaire afirmava que
“o truque mais inteligente do Diabo é convencer-nos de que não
existe”. Atualmente, os mais ricos e a esquerda cosmopolita
concorrem em coro para dizer que o neoliberalismo é uma invenção e
que quem contesta a globalização capitalista é um racista e um
xenófobo.
Na prática, o que estes
autodenominados setores de “esquerda” fazem é tentar reforçar a
legitimidade da globalização capitalista, demonizando qualquer
veleidade de contestação. “O pensamento único do neoliberalismo
fundiu-se com o 'centro virtuoso' moral de uma comunidade discursiva
'internacionalista'. A soberania serve hoje como base de operações
numa luta cultural especial, na qual a moralização do capitalismo
globalmente expandido associa-se a uma desmoralização de interesses
daqueles que são prejudicados pelo mesmo capitalismo”, faz notar
Streeck.
Para falar claro, se vivessem no tempo
do Império Romano e de Crasso, estes setores políticos condenariam
a revolta dos escravos por ser tribalista e contra a “globalização
positiva” de Roma.
Vivemos um momento de “interregno”,
como chamou Gramsci a o momento de florescimento dos fascistas. O
crescimento das desigualdades e das incertezas faz com que as nossas
sociedades vivam um momento de transição. Gramsci — o homem de
quem Mussolini dizia “Temos de impedir essa cabeça de pensar
durante 20 anos” — escreveu nos seus “Cadernos do Cárcere” a
seguinte frase: “O velho mundo está morrendo. O novo tarda em
aparecer. E neste lusco-fusco nascem os monstros.” O crescimento
dos radicalismos de direita, no qual a eleição de Trump se
enquadra, expressa este momento. Mas não se deve confundir o
aparecimento dos monstros com a necessidade de manter a globalização
capitalista e as desigualdades que os produzem.
No filme de Stanley Kubrick, aos
escravos derrotados é-lhes dito para identificarem Espártaco, a fim
de ser exemplarmente castigado, em troca do perdão de todos os
restantes. Um a um, os escravos levantam-se dizendo que são
Espártaco. Mortos na cruz, não têm a frase de Jesus “que Deus
lhes perdoe porque não sabem o que fazem”. A sua promessa é
prometeica e tem outra inspiração: “Voltaremos e seremos
milhões.”
Reza a história que Crasso não teve
um fim feliz. A lenda diz que, derrotado pelos partos, acabou morto
com ouro derretido enfiado pela boca abaixo, para assinalar a sua
cobiça. Assim seja.
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